Crónica do Migas
Beneath this mask there is more than flesh. Beneath this mask there is an idea, Mr. Creedy, and ideas are bulletproof.

27 maio 2008

 

Escassez relativa


Um dos aspectos que mais irrita os automobilistas na subida dos preços dos combustíveis é a aparente convergência dos preços do gasóleo e da gasolina. Digo aparente porque a diferença que sempre houve teve em grande medida uma razão fiscal (o ISP é mais baixo no caso do gasóleo). A convergência, na verdade, é outra coisa: o gasóleo está mais caro do que a gasolina.

Apesar das inúmeras falhas no mercado de combustíveis em Portugal (monopólio na refinação e no mercado grossista, distorção no retalho por via dos licenciamentos e possivelmente até alguma concertação) este efeito faz todo o sentido e é facilmente explicável. A venda de veículos a gasóleo tem aumentado relativamente aos a gasolina. Não só pelos primeiros serem mais económicos, mas também pelo facto de que as motorizações a gasóleo são hoje em dia muito melhores. Até a Honda já entrou em força nesse segmento, apesar de há uns anos terem os seus responsáveis afimado que jamais produziriam carros a gasóleo. A alteração do parque automóvel tem um impacto imediato na procura do respectivo combustível, o que explica, à primeira análise, o fenómeno.

Mas há mais. E mais relevante. O refinador não pode pegar num barril de petróleo e decidir se vai produzir gasóleo ou gasolina. O processo é mais ou menos constante e ambos os combustíveis são produtos do mesmo barril. Mas com diferentes proporções: por cada litro de gasóleo produzido saem também do mesmo petróleo cerca de dois litros (e picos) de gasolina. Há também outros derivados como a querosene, o fuel oil entre outros, mas menos relevantes para a questão em causa. O resultado é que existe uma oferta mista. Quanto maior a procura de gasóleo, assumindo que esta é satisfeita pela oferta, aumenta desproporcionalmente a oferta de gasolina. Ou seja, a escassez relativa do gasóleo face à gasolina aumenta pelos dois lados da equação. Se o número que ouvi a respeito da quota de mercado dos veículos a gasóleo vendidos (novos) é verdade (quase 50%), os próximos tempos verão a relação entre o preço do gasóleo e da gasolina continuar a agravar-se. A não ser que surjam oportunidades de exportação de gasolina que compensem o desequilíbrio.

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08 maio 2008

 

Nas encruzilhadas do Mississippi


Robert Johnson nasceu em Hazlehurst, no Mississippi, no dia 8 de Maio de 1911, há exactamente 97 anos. Nasceu com o nome Robert Leroy Dodds, pois a sua mãe havia entretanto casado com um homem que não era seu pai, e que por isso sempre lhe guardou ressentimento. Só soube o nome do seu verdadeiro pai aos 17 anos de idade; e foi a partir dessa altura que Robert começou a frequentar as chamadas juke-joints, onde conheceu o seu grande mentor, Son House, uma lenda dos Delta blues. Mudou de nome, para aquele com que se tornou conhecido, e passou boa parte do resto da sua vida a tentar descobrir o paradeiro do pai. Se conseguiu encontrá-lo ou não, é coisa que Robert nunca comentou com ninguém. O facto é que cada vez que uma nova pista surgia, ele fazia-se à estrada nessa direcção. Walking Blues, um dos seus temas mais conhecidos e tocado por outros artistas, trata desse espírito vagabundo tão próprio dos blues. Vemo-lo aqui em versão de Eric Clapton.



Entre 1936 e 37, Robert Johnson fez todas as gravações da sua vida. Um total de 29 músicas, com 41 faixas, onde obviamente existem takes diferentes dos mesmos temas. Destas 29, viu 11 singles de 78 rotações serem editados antes de morrer, altura em que foi distribuido o décimo-segundo, e último, pela editora Vocalion. As gravações foram feitas, como várias outras do género, em quartos de hotéis. Foi no Texas, e o técnico responsável foi Don Law, um importante produtor de música popular americana, embora, curiosamente, nascido em Inglaterra. Paternalista, estava convencido que Robert era um labrego que nunca havia saido das plantações de algodão... No entanto, o seu estilo único viria a ser uma influência marcante para múltiplos guitarristas. Neste video podemos ver Roy Rogers falar sobre Robert Johnson e tocar outro clássico: Rambling on my mind.

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05 maio 2008

 

Abutres


No contexto das notícias catastrofistas, quase “fim dos tempos”, sobre o aumento do custo de vários bens alimentares, a campanha do Banco Alimentar contra a fome deste fim de semana teve especial relevo nas notícias e tudo indica que foi muito bem sucedida. Quase duas dezenas de milhar de voluntários e, presumo, centenas de milhar de contribuintes (no sentido real do termo), deram forma a uma enorme iniciativa de apoio a quem passa necessidade. O que acho realmente extraordinário é o facto da maior parte destas pessoas não questionar o facto de apesar de quase metade de tudo o que produzem ser consumido pelo estado, alegadamente “social”, continuem a persistir situações de carência que apenas são resolvidas por iniciativas fora desse estado. Se o questionam, o facto é que não agem em consonância.

As décadas vão passando, o peso do estado vai aumentado e vão subindo de tom as queixas sobre aumentos das diferenças entre ricos e pobres, ou da dimensão das “bolsas” de pobreza. A conclusão, evidente, de que algo está errado no modelo do estado social nunca é atingida. As receitas passam sempre por mais intervenção, mais estado e menos escolha individual. Note-se que o problema é rigorosamente o mesmo nas outras funções, supostamente nucleares, do estado. Quanto mais cresce a carga fiscal, piores os serviços de saúde prestados, com enormes listas de espera e racionamento; menos formados são os alunos e mais desacreditada fica a escola pública; mais desacreditadas ficam a justiça e a segurança pública. As boas intenções, que proverbialmente vão pavimentando a estrada daqui ao inferno, essas nunca são questionadas.

A razão para esta passividade é filosófica. O humanitarismo, a ideia de que o padrão moral é o nobre sacrifício e de que a mais alta virtude que alguém pode almejar é viver para ajudar os outros são responsáveis por isto. Como escreveu Isabel Paterson, quando esta ideia se junta ao internacionalismo e à vontade de “ajudar a humanidade”, estão reunidas as condições para a catástrofe. Condicionadas pelo padrão moral altruista, as pessoas são incapazes de perceber as implicações efectivas dessa filosofia de subordinação da produção à ajuda a terceiros (quando devia ser justamente ao contrário) ou nem sequer de julgar os “grandes humanitários” pelos resultados e não pelas intenções (algo que parece óbvio).

Desta forma, as pessoas acabam por não ver o verdadeiro papel dos estadistas responsáveis pela situação. Não vêm que estes, ao defender as suas boas intenções para o estado “social”, acabam por comportar-se como abutres que se alimentam (espiritualmente, quando não literalmente) da miséria alheia.

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03 maio 2008

 

Cult of personality


Fazem hoje 20 anos sobre o lançamento do álbum de estreia dos Living Colour. Esta banda era única em muitos sentidos: Uma banda de heavy metal com músicos negros, coisa nunca vista, bem como o extraordinário guitarrista Vernon Reid, uma fusão da "escola" de Jimi Hendrix com a técnica metal... O álbum chamava-se Vivid e continha Cult of personality, que podemos ver aqui em baixo.

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01 maio 2008

 

A verdadeira escassez


Dizia Voltaire que o senso comum não é assim tão comum. E, de facto, perante o que se tem dito sobre os preços dos bens alimentares, em especial o arroz, podemos concluir que a escassez de senso comum é algumas ordens de grandeza superior à escassez dos primeiros. Segundo o Jornal de Negócios, Zean Zeigler, que além de ter nome de guitarrista de rock psicadélico tem o sugestivo título de «relator da ONU para o Direito à Alimentação», terá afirmado que o biocombustíveis são «um crime contra grande parte da humanidade». Apesar de não achar que os biocombustíveis sejam grande ideia (mais ou menos no patamar do Microsoft Bob e do Fiat Multipla), creio que existem vários equívocos na ideia de que os aumentos de preços dos bens alimentares são causados pela produção de biocombustíveis.

Em primeiro lugar, à parte de algumas experiências com palha de arroz e outra biomassa resultante da sua produção, este alimento não é usado em biocombustíveis. Além disso, nem sequer se pode dizer que as commodities usadas em biocombustíveis (essencialmente milho e cana de açucar, a que se juntam em menor volume a soja, o côco e o girassól) tenham no arroz um substituto. Em segundo lugar, a subida do preço do arroz foi repentina, ao ponto de os preços não se terem repercutido ainda no produtor. O arroz transaccionado e cujo preço mais que duplicou encontra-se no circuito de distribuição internacional (entre o produtor e os grossistas nacionais). Isto sugere que o problema não se deve nem à produção (os níveis são idênticos aos do ano passado) nem ao consumo. Tudo indica que houve um súbito fluxo de dólares para este mercado como refúgio da desvalorização desta moeda. Quem tinha dúvidas de para onde iria o dinheiro barato injectado pela Federal Reserve tem aqui uma potencial resposta.

Mas mais extraordinário ainda é a multiplicidade de intervenções políticas neste mercado. Desde o nanny state japonês que tem desencorajado a produção de arroz com o objectivo de mudar os hábitos alimentares no país até ao rigoroso oposto em países como a China, onde o governo subsidia o arroz para encorajar a sua produção e consumo. Também brilhante é a intervenção dos governos da Índia, Vietname e Cambodja, que confrontados com uma subida do preço do arroz resolveram restringir a oferta; uma receita económica digna de um qualquer aluno da Faculdade “Chapeleiro Louco” de Economia da Universidade do País das Maravilhas, onde tudo funciona ao contrário.

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