Crónica do Migas
Beneath this mask there is more than flesh. Beneath this mask there is an idea, Mr. Creedy, and ideas are bulletproof.

30 março 2008

 

O Humanitário com a Guilhotina


(adaptado e traduzido a partir do original de Isabel Paterson, incluido no seu livro The God of The Machine, editado em 1943)

A maior parte do mal no mundo é feito por boas pessoas, e sem ser por acidente, lapso ou omissão. É o resultado das suas acções deliberadas, persistentes ao longo do tempo, e por si vistas como motivadas por altos ideais e objectivos virtuosos. Isto é demonstravelmente verdadeiro; e nem podia ser de outra forma. A percentagem de pessoas realmente malignas, violentas ou depravadas tem de ser pequena, pois nenhuma espécie sobreviveria se os seus membros habitual e conscientemente se ferissem uns aos outros, por sistema. A destruição é tão fácil que mesmo uma minoria persistente mal-intencionada poderia exterminar em pouco tempo a maioria inocente de pessoas tendencialmente boas. Homicídio, roubo, pilhagem e destruição são facilmente cometíveis por todos os indivíduos em qualquer altura. Se assumirmos que estes são inibidos apenas por medo ou pela força, que temerão eles, ou quem usaria de força contra eles se todos os indivíduos tivessem as mesmas inclinações? Se calculássemos todo o mal cometido por criminosos deliberados, o número de homicídios, a extensão de estragos e perdas, este seria certamente negligenciável comparado com a totalidade de morte e devastação causada a seres humanos pela sua própria espécie. Por conseguinte, é óbvio que em periodos quando milhões são exterminados, a tortura é praticada, a fome forçada, a opressão tornada política, como presentemente em grande parte do mundo, e como ocorreu frequentemente no passado, tal só é possível com a vontade de muito boa gente, mesmo com a sua acção directa, no que consideram objectivos virtuosos. Quando não são os executantes imediatos, dão publicamente a sua aprovação, elaborando justificações ou então escondendo factos com silêncio, e desencorajando a discussão.

(...)

Como foi que a filosofia humanitária da Europa do século XVIII abriu as portas ao Reino do Terror? Não foi por mero acaso; foi antes a consequência lógica da premissa original, do objectivo e meios propostos. O objectivo era o de promover o bem dos outros enquanto a primeira justificação da existência; os meios, os poderes do colectivo; e a premissa, a de que o "bem" é colectivo.

O fundo da questão é ético, filosófico e religioso, abarcando a relação do homem com o universo, da sua faculdade criativa com o seu Criador. O erro fatal ocorre na incapacidade de reconhecer a norma da vida humana. Claramente, há uma grande quantidade de dor e angústia que ocorrem na existência. A pobreza, a doença e acidentes vários são possibilidades que podem ser reduzidas a um mínimo, mas que não podem ser totalmente eliminadas do caminho que a humanidade deve percorrer. Mas estas não são condições desejáveis, para ser alcançadas ou perpetuadas. Com naturalidade, as crianças têm pais, enquanto a maior parte dos adultos gozam de uma saúde razoável a maior parte da vida e desenvolvem actividades úteis que lhes permite subsistir. Essa é a norma e a ordem natural. Os males são marginais. Podem ser aliviados com recurso ao excesso marginal de produção; caso contrário nada se poderia fazer. Assim, não se pode assumir que o produtor existe apenas em função do não-produtor, o saudável em função do doente, o capaz em função do incapaz; nem qualquer pessoa em função de outra. (O processo lógico, se assumirmos que qualquer pessoa existe apenas em função de outra, foi implementado em sociedades semi-bárbaras, quando a viúva ou seguidores de um homem morto eram enterrados vivos na sua sepultura.)

As grandes religiões, que são também grandes sistemas intelectuais, sempre reconheceram as condições da ordem natural. Elas urgem a caridade e a benevolência como obrigações morais, a ser alcançadas por via do superavit do produtor. Isto é, tornam-nas secundárias relativamente à produção, pela inultrapassável razão que sem produção não haveria nada para dar. Consequentemente, elas prescrevem regras severas, a ser assumidas apenas voluntariamente, para aqueles que desejarem devotar totalmente as suas vidas à caridade, a partir de contribuições. Esta é sempre considerada um vocação especial, pois nunca poderia ser a forma de vida comum. Como o beneficente tem de obter os fundos ou bens, que distribui, através do produtor, ele não tem autoridade para mandar; ele tem de pedir. Quando ele subtrai a sua própria subsistência a partir destes donativos, ele apenas pode retirar o mínimo essencial. Como prova da sua vocação, ele tem até de prescindir da felicidade da vida familiar, como forma de receber a benção formal. Nunca pode obter o seu conforto a partir da miséria alheia.

(...)

Se o objectivo principal do filântropo, a sua razão de existir, é ajudar os outros, o seu bem supremo requer que esses outros estejam em estado de necessidade. A sua felicidade é a outra face da moeda da miséria alheia. Se ele deseja ajudar a "humanidade", então toda a humanidade tem de passar necessidade. O humanitário pretende ser o agente principal nas vidas dos outros. Ele não pode admitir nem o divino nem a ordem natural, pela qual os homens têm o poder de se ajudar a si mesmos. O humanitário substitui-se a Deus.

Mas dois factos inconvenientes o confrontam; primeiro, os capazes não precisam da sua ajuda; e segundo, a maior parte das pessoas, se não forem pervertidas, decididamente não deseja ser "ajudada" pelo humanitário. Quando se diz que toda a gente devia viver em função dos outros, qual é o rumo de acção específico que deve ser seguido? Deve cada pessoa fazer exactamente o que qualquer outra quiser, sem limites ou reservas? E somente o que os outros querem que faça? O que acontece se pessoas diferentes fizerem exigências contraditórias? O esquema é impraticável. Possivelmente o que se pretende é que uma pessoa faça apenas o que é "bom" para os outros. Mas saberão esses outros o que é bom para eles? Não, a mesma dificuldade elimina esta hipótese. Deverá então A fazer o que lhe parece bom para B, e B o que lhe parece bom para A? Ou deverá A aceitar apenas o que lhe parece bom para B, e vice-versa? Tal seria absurdo. Claro que o que o humanitário na verdade propõe é que seja feito o que ele pensa ser melhor para todos. É nesta altura que o humanitário monta a sua guilhotina.

Que tipo de mundo vê o humanitário como aquele que lhe permite o máximo alcance de acção? Só pode ser um mundo de sopas-de-pobres e hospitais, no qual ninguém retenha o poder natural de um ser humano de ajudar-se a si mesmo ou de resistir que ajam sobre ele contra a sua vontade. E este é o mundo criado pelo humanitário quando consegue levar a sua vontade avante. Quando um humanitário deseja que cada pessoa tenha um litro de leite, é evidente que não é ele que tem o leite, nem é capaz de o produzir. Caso contrário, porque haveria ele de simplesmente "desejar"? Mais, mesmo que ele possuísse leite em quantidade suficiente para dar um litro a cada pessoa, desde que os seus supostos beneficiados tivessem a possibilidade de produzir leite para si próprios, eles diriam "não, obrigado". Assim sendo, como criará o humanitário a situação em que ele terá todo o leite e todos os outros carecerão dele?

Só há uma forma. Através do uso do poder político na sua máxima extensão. Por isso, o humanitário sente-se mais gratificado ao encontrar ou visitar um país onde todos vivem limitados por racionamento. Onde a subsistência é distribuída aos poucos, o seu desiderato é alcançado: carência generalizada e um poder superior para "aliviá-la". O humanitário na teoria é o terrorista em acção.

(...)

O filântropo, o político e o parasita estão inevitavelmente aliados, porque têm os mesmos motivos, procuram os mesmos fins; existir para, e através de, outros. As pessoas boas não podem ser exoneradas do facto de os apoiarem. Nem podemos acreditar que as pessoas boas estão totalmente alheadas das consequências. Mas quando estas pessoas boas sabem, e seguramente o sabem, que três milhões de pessoas (na menor das estimativas) morreram de fome em um ano, como consequência dos métodos que aprovam, porque continuam a fraternizar com os assassinos e a apoiar as suas acções? Porque lhes disseram que a morte de três milhões poderá, no fim, beneficiar um número maior. Este argumento aplica-se igualmente bem ao canibalismo.

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