Crónica do Migas
Beneath this mask there is more than flesh. Beneath this mask there is an idea, Mr. Creedy, and ideas are bulletproof.

07 junho 2006

 

Do Ser ao Dever Ser


No post do JLP, ao qual respondi em parte aqui, existem outras considerações que surgem na sequência do "Objectivismo vs Liberalismo" do Helder n'O Insurgente.

Perante a afirmação de que "A diferença (simplificando e generalizando) está em que o objectivista não se exime de fazer um julgamento moral da acção consequente, sem que (como os liberais) imponha a adopção do caminho correcto", o JLP escreveu:

"É essa exactamente para mim uma das grandes mais-valias do Liberalismo, a de construir um sistema de regras e de princípios a priori que não faça juízos de valor em relação a como terão que ser vividos e que não se oriente para um determinado paradigma."
Não percebo como é possível definir regras e princípios sem que isso implique juízos de valor. Ao afirmarmos, no liberalismo, que cada um pode fazer, dizer e pensar o que quiser, desde que isso não viole a liberdade de outros indivíduos agirem de igual modo, estamos inevitavelmente a emitir juízos de valor: não ter liberadade para opinar é errado; violar a liberdade de outrém é errado; afirmar o que se pensa é certo; respeitar a propriedade alheia é certo.

Filosoficamente, se a Política é o processo pelo qual se julga a melhor direcção para a acção colectiva, e o colectivo é um conjunto de indivíduos, então esse processo deve necessariamente ter em conta os interesses desses indivíduos. O padrão para julgar esses interesses são os valores que para eles têm significado. A Ética é a disciplina da filosofia que ajuda a entender esses valores. Assim, por definição, não é possível fazer política sem emitir juízos de valor, isto é, sem ter um código ético, ou moral.

Onde há enormes diferenças entre as teorias políticas é no âmbito da acção colectiva e no código ético subjacente. Mas todas elas têm um código. Usando os meus exemplos contrastantes favoritos: o liberalismo defende um âmbito limitado na acção colectiva e um código de valores que preza a liberdade individual; o socialismo defende um âmbito alargado da acção colectiva e um código de valores que coloca o colectivo acima do indivíduo.

O JLP escreveu ainda:

"Além disso eu, que relativista me confesso, tenho a dificuldade em aceitar toda a construção Objectivista baseada num conceito apriorista e metafísico da Razão. A minha perspectiva é que a Razão não existe como ente autónomo, mas é sim um comportamento ou tendência que emerge (mas para que não se caminha absolutamente) na condução de estratégias e caminhos individuais de maximização da utilidade e do hedonismo pessoal (...) o Objectivismo assume-se quase como uma Religião da Razão, limitando praticamente o Liberalismo a uma crença doutrinal de que é o melhor catecismo para lá chegar."
Esta interpretação do objectivismo não está correcta. O objectivismo defende que a realidade é objectiva e que pode ser percebida pelo homem por intermédio dos seus sentidos e da sua capacidade racional - a razão. Esta não é, portanto, algo para onde se caminha, mas uma ferramenta para entender a realidade e para guiar a acção.

A característica mais marcante do objectivismo é a concepção de um código de valores objectivo, derivado da realidade, compatível com a natureza humana e que é racional. Se historicamente os valores eram, para as várias filosofias, intrínsecos ou subjectivos, o objectivismo defende que não são nem uma coisa nem outra. Isto é, não são externos ao homem, para ser descobertos, nem são internos ao homem, e por isso sempre relativos. O objectivismo defende que os valores têm de ter valor para alguém (value needs a valuer) e que não são arbitrários (devem ser explicados pela razão).

No fundo, para o objectivismo, não pode haver separação entre facto e valor, entre a verdade e o bem. "Ser bom" é uma espécie de "ser verdadeiro". "Ser mau" é uma espécie de "ser falso". E vice-versa. Ao perceber o "ser", tiramos necessariamente conclusões sobre o "dever ser".

PS: O Helder entretanto também respondeu. Como o post está classificado com um "I", e o JLP comentou que ia "conter o ímpeto", presumo que o debate não vai ficar por aqui :-)

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