Crónica do Migas
Beneath this mask there is more than flesh. Beneath this mask there is an idea, Mr. Creedy, and ideas are bulletproof.

06 outubro 2006

 

Juízos, Factos e Valores


Ora aqui está um tema interessante para discutir, que a coisa tem andado meio morna. No seguimento do anúncio da iminente (e para alguns eminente) colaboração de Pedro Arroja no Blasfémias, Fernanda Câncio postou uma entrevista que lhe tinha feito há mais de uma década. Nessa entrevista, Arroja cita um estudo de Robert Fogel onde este conclui que os escravos na América do século XIX viviam melhor (em termos económicos) que os trabalhadores livres (fossem estes brancos ou negros). Isto gerou comentários, acusações de racismo e, no Blasfémias, João Miranda chamou a atenção para a necessidade de separar juízos de facto de juízos de valor. Nem Fernanda Câncio nem António Figueira alinham nesta separação. Aparentemente José Barros também não, embora por razões diferentes. A coisa culminou com João Miranda a perguntar a Fernanda Câncio se ela tem a certeza que percebe porque é que a escravatura é condenável, e a afirmar:
"um liberal condena a escravatura porque ela se baseia na violação da liberdade do escravo e aprova o capitalismo porque ele se baseia na liberdade individual de todos. um liberal condenaria a escravatura mesmo que os escravos vivessem como lordes e aprovaria o capitalismo mesmo que num sistema capitalista se vivesse miseravelmente."
O debate sobre a separação ou não de factos e valores (e dos seus respectivos juízos) é estéril se não definirmos o que entendemos ser a natureza dos valores. E dos factos também, embora hoje em dia só mesmo um marxista paleolítico é que, por via da dialética materialista e do seu doublethink Orwelliano, defenderia a possibilidade de arbitrariamente reinterpretar a realidade.

Se há coisa que João Miranda é, é consistente. Para alguém que vê o liberalismo numa óptica positiva e não normativa, é essencial distinguir factos e valores, sendo, na sua visão, os primeiros positivos e objectivos enquanto os últimos normativos e subjectivos. O mesmo se aplica à maioria dos liberais relativistas. Já quem defende que os valores são intrínsecos, não pode ter outra visão que não seja a identidade de factos e valores. Para eles, um facto é um facto, e um valor é também um facto; uma verdade revelada ou pela via sobrenatural ou pela via social-colectivista. Para os puramente subjectivistas, as diferenças também não são relevantes, tanto factos como valores são subjectivos e variam com os caprichos de cada um.

Como já referi aqui e aqui, tenho uma opinião diferente, objectivista, mas não ortodoxa: Factos e valores são coisas diferentes, mas não podem ser filosoficamente separados. Um facto é uma espécie de valor, na medida em que a sua natureza de verdade é "boa". Ou dito de outra forma, negar os factos, de forma consciente, é errado. Mas mais importante, um valor é uma espécie de facto, na medida em que a sua natureza de certo ou errado seja verdadeira (ou falsa). No fundo, a ética necessita da epistemologia, tal como esta necessita da metafísica. Esta opinião também não está isenta de problemas. Por alguma razão os problemas facto/valor e ser/dever-ser são temas tão recorrentes no debate filosófico. A questão aqui é que existem valores claramente subjectivos (p.ex. gostar de Rachmaninoff) e claramente objectivos (p.ex. gostar de viver em liberdade). A origem epistemológica dos primeiros é difusa, ao contrário da dos segundos. Em alguns casos uma abordagem ao estilo Imperativo Categórico de Kant ajuda a identificar a diferença, mas como um terrorista suicida pode estoirar-se e arrastar outros com ele sem violar a "máxima", este torna-se um método deficiente...

O problema facto/valor, para além dos aspectos éticos/morais acima apontados, tem também implicações epistemológicas. Que até podem ser mais importantes em termos do seu impacto na vida das pessoas. Não é por acaso que a esquerda tem evoluido para uma posição intrinsicista. Se originalmente queria moldar o conhecimento a partir da distorção da realidade permitida pela dialéctica materialista, hoje em dia molda-o através do seu condicionamento moral. O intrinsicista não aprecia muito factos, especialmente quando estes contradizem os seus valores supostamente factuais.

A mistura intrinsicismo-doublethink na esquerda torna-se muito mais perigosa ao usar a ciência como veículo para propagação de dogmas ideológicos. Se nos tempos antigos as suas abordagens nesta área eram rudimentares e contestadas pela maioria dos cientistas
, como no caso de Stalin e do seu pseudo-agro-cientista Trofim Lysenko, hoje em dia as abordagens são mais sofisticadas. A campanha de Al Gore sobre o aquecimento global é um excelente exemplo.

Gore deliberadamente confunde os aspectos factuais com os aspectos morais na questão. No seu livro Earth in the balance, por exemplo, acusa os cépticos (relativamente à teoria do aquecimento global) de estarem no mesmo plano moral daqueles que não se opuseram a Hitler quando este chegou ao poder. De igual modo, o valor moral da vida e a "bondade" de querer evitar a destruição do planeta não são relevantes para a questão factual em causa.

Como referiu Michael Crichton, as constantes referências de Gore a um "consenso" ciêntifico são irrelevantes. Os factos não são democráticos. Basta um céptico que eventualmente tenha razão para deitar por terra o "consenso". E apesar de existirem estes cépticos, as suas teorias são ignoradas da mesma forma que muitas vezes são as opiniões políticas de grupos menos representativos. Este tipo de argumento aplica a lógica de decisões políticas (orientadas por valores comuns dos envolvidos) à ciência. O mecanismo de subsídios estatais à investigação científica acaba por reforçar este efeito, pois promove estudos que sejam conducentes a confirmar as opiniões não fundamentadas dos decisores políticos.

Adicionalmente, os incentivos para apresentar projectos que pretendam testar hipóteses que suportem o aquecimento global são maiores (pois implicam mais acções e tentativas de desenvolver "remédios") do que para projectos que pretendam o contrário (pois implicam não fazer nada, ou fazer menos). O efeito final pode ser a descredibilização total da ciência, tornando-a para a maioria das pessoas como algo que se escolhe da mesmo forma que opiniões políticas. No fundo imbebendo a ideia de que a realidade é uma questão de escolha.

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Bocas:
Quem disse tudo melhor foi Jacques Monod ("Le Hasard et la Nécessité"). Como dizia o outro espero que o João Miranda concorde...

Le postulat d'objectivité, en denonçant l'« ancienne alliance », interdit du même coup toute confusion entre jugements de connaissance et jugements de valeur. Mais il reste que ces deux catégories sont inévitablement associés dans l'action, y compris le discours. Pour demeurer fidéles au principe, nous jugerons donc que tout discours (ou action) ne doit être considéré comme signifiant, comme authentique que si (ou dans la mesure où) il explicite et conserve la distinction des deux catégories qu'il associe. La notion d'authenticité devient, ainsi définie, le domaine commun où se recouvrent l'éthique et la connaissance ; où les valeurs et la vérité, associées mais non confondues, révèlent leur entiére signification à l'homme attentif que en éprouve la résonance. En revanche, le discours inauthentique où les deux catégories sont amalgamées et confondues ne peut conduire qu'aux non-sens les plus pernicieux, aux mensonges les plus criminels, fussent-ils inconscients.
On voit bien que c'est dans le discours « politique » (j'entends toujours « discours » dans le sens cartésien) que ce dangereux amalgame est pratiqué le plus constamment et systématiquement. Et cela pas seulement par les politiques de vocation. Les hommes de science eux-mêmes, hors leur domaine, se révèlent souvent dangereusement incapables de distinguer entre la catégorie des valeurs et celle de la connaissance.



Santiago
 
Quando se afirma que "os factos são positivos e objectivos" está-se a incorrer numa formulação positivista de cariz metafísico.

Como se chega a essa afirmação? Apenas pela elevação desse postulado em NORMA SUBJECTIVA. Ou seja, é a auto-refutação da própria coerência do discurso, uma vez que afirma que "os valores são normativos e subjectivos".

Resumindo, os factos não existem independentemente da teoria NORMATIVA e SUBJECTIVA que os sustentam (no sentido em que é uma actividade humana articulada pela linguagem) e não por revelação da natureza ou por inspiração divina.
 
Luis- Não me cabe a mim estar a defender ou explicar as afirmações do Pedro Arroja. Parece-me que o que ele disse na entrevista relativamente à situação económica dos escravos não permite concluir o que quer que seja sobre a sua posição ética relativamente à escravatura. Há na entrevista outras frases que sugerem alguns preconceitos, mas daí a tirar conclusões é um "long stretch of imagination". Ainda por cima parece-me uma questão muito menos interessante do que a questão dos juízos de facto e valor.
 
h5n1- A afirmação é sem dúvida carregada de cariz metafísico. É uma posição sobre a natureza da realidade.
Não há nada de normativo na afirmação, na medida em que estamos num patamar metafísico e/ou epistemológico.
Se você realmente acha que os factos não existem independentemente das teorias normativas e subjectivas então seguramente teremos dificuldade em concordar no que quer que seja. Sugiro-lhe um pontapé numa rocha para ver se magoa o pé.
 
"Sugiro-lhe um pontapé numa rocha para ver se magoa o pé."
Descalço.
 

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