17 agosto 2006
Moral e Tolerância
Aproveito o post do Filipe Melo Sousa no Speakers Corner, "Uma Paleta de Tons Cinzentos", para retomar o tema da relação entre a moral, ou ética, com o liberalismo e objectivismo. O contexto pode ser retirado na sequência de um post do Helder n'O Insurgente, da resposta do JLP no Small Brother, das minhas réplicas (1 e 2) e da réplica do Helder.
O post do Filipe é basicamente a apresentação das ideias principais do artigo "The Cult of Moral Grayness", de Ayn Rand, escrito em 1964. Peca por se colar demasiado ao original, mas acima de tudo por omitir algumas partes do argumento de Rand que são essenciais para enquadrar o artigo na ética objectivista. Estas partes omitidas revestem-se de especial importância tendo em conta o "cisma" que ocorreu no movimento objectivista entre os "discípulos oficiais", liderados por Leonard Peikoff e Peter Schwartz, e o outcast David Kelley, aquando da publicação dos artigos deste último "On a Question of Sanction" e "Truth and Toleration".
As ideias omitidas são:
1) Os juízos éticos ou morais só fazem sentido no contexto da escolha livre e individual. Uma pessoa sem liberdade de escolha para as suas acções não pode ser julgada. Nem a sua moralidade pode ser inferida de tendências estatísticas da comunidade em que vive.
2) Um indivíduo pode errar, com boa fé, ao formular um juízo, uma vez que não é omnisciente. Isso não constitui uma falha moral e não faz dele "cinzento".
3) Em questões complexas, é possível existirem aspectos certos e errados, verdadeiros ou falsos, no mesmo lado do argumento ou conflito. Isso não é razão para nos abstermos de julgar esses vários aspectos, um de cada vez.
4) O facto de existirem pessoas que são efectivamente "cinzentas", isto é, que agem de forma inconsistente, não é argumento para abandonar os conceitos de bem e mal. Teremos sempre de julgar esses "graus de cinzento", caso contrário colocamos o pequeno ladrão no mesmo saco que o serial killer.
As reticências dos relativistas (ou subjectivistas) no que toca à posição objectivista estão essencialmente ligadas ao receio do erro e da impotência; bem como a alguma confusão com a teoria de moral intrínsica, comum às religiões. O receio é que o julgamento conduza a demasiada intolerância. Face à falibilidade dos juízos e às limitações potenciais à liberdade dos indivíduos, preferem abster-se de julgar. Mas é preciso distiguir entre os relativistas nihilistas, para os quais não há moral e vale cada um por si, e os hedonistas, que limitam o relativismo ao princípio absoluto do respeito mútuo da liberadade individual. Estes últimos são tipicamente liberais ou libertários, e ao definirem o seu princípio absoluto estão (usando a falácia do stolen concept) na verdade a negar o relativismo.
As quatro ideias acima referidas são úteis para distinguir alguns aspectos importantes entre as teorias de valores (intrínsecos, subjectivos, objectivos). Estas observações são pela sua natureza oversimplified, a ideia não é definir exactamente cada teoria, é antes salientar os contrastes:
Intrínsecos | Subjectivos | Objectivos | |
Só escolhas livres e individuais podem ser julgadas | Várias religiões reconhecem que sem livre arbítrio não é possível julgar os indivíduos, contudo o carácter intrínseco do valores torna os juízos muitas vezes independentes de acções concretas | Os nihilistas tenderão a considerar a liberdade como outro dos valores subjectivos; os hedonistas concordarão com o princípio do livre arbítrio e da escolha individual | Acção sob coação não pode ser julgada; As escolhas morais dos indivíduos valem por si e não por estatísticas sociais |
Falibilidade ou erro cognitivo | Sendo a verdade revelada, o erro não é possível - o "pecado" faz parte da natureza humana | Os erros são, na prática, irrelevantes, pois a verdade é subjectiva | A não-omnisciência não faz do indivíduo um ser imoral; apenas o erro consciente e deliberado pode ser julgado |
Questões complexas | O carácter de revelação da verdade pode por vezes generalizar juízos sobre questões complexas fora dos méritos específicos das suas sub-questões | O nirvana dos subjectivistas; quanto mais difícil encontrar a verdade mas se confirma que tudo é cinzento... | A complexidade não nos deve impedir de procurar a verdade de cada parte ou sub-questão |
Inconsistência dos indivíduos | Os indivíduos são por natureza imperfeitos e "pecadores"; no entanto é possível calcular a distância de cada um face à verdade revelada | A inconsistência é um prerrogativo do indivíduo; é impossível julgar a inconsistência, pois a verdade é diferente para cada um | Os valores, só por si, são objectivos mas têm de ser avaliados por pessoas, o que lhes dá alguma subjectividade, daí que possa surgir inconsistência |
Etiquetas: ética, individualismo, liberalismo, objectivismo