Crónica do Migas
Beneath this mask there is more than flesh. Beneath this mask there is an idea, Mr. Creedy, and ideas are bulletproof.

28 julho 2008

 

You Kant always get what you want


Como escreveu aqui Pedro Arroja, muitos objectivistas consideram a formalização de uma teoria moral baseada no interesse próprio como a principal contribuição de Ayn Rand para a filosofia moderna. Eu não concordo, embora não pelas mesmas razões que Arroja não concorda. Era objectivo de Rand construir uma defesa moral do capitalismo, internamente coerente e sistemática. Isso pressupunha que essa defesa fosse baseada num sistema filosófico completo, incluindo bases metafísicas, epistemológicas e éticas, que não a deixassem "côxa". A ética do interesse próprio, neste contexto, surge como sendo necessária à defesa do capitalismo, sistema no qual os indivíduos interagem com base nos seus respectivos interesses próprios. Da mesma forma, para sustentação da validade desse interesse próprio, surge a base epistemológica de que ao indivíduo é possível observar e conhecer a realidade com recurso à sua faculdade racional e aos seus sentidos, podendo assim defender que esse interesse próprio tem fundamentos cognitivos e não por capricho; por sua vez, este empirismo epistemológico baseia-se nos axiomas metafísicos de que "a existência existe", que a sua natureza é objectiva ("A é A") e independente da consciência do observador.

As contribuições importantes de Rand para a filosofia moderna passam por dois aspectos diferentes. O primeiro é o todo e o segundo são algumas das partes. Em primeiro lugar, o objectivismo reveste-se de uma simplicidade que tem enorme valor explicativo, independentemente de estar potencialmente incompleto e não cobrir satisfatoriamente todas as possíveis questões filosóficas. Uma vez perguntaram a Rand se podia explicar a "sua filosofia" rapidamente «while standing on one leg». Poucos teriam o à vontade de o fazer literalmente, levantando um pé do chão. E poucos seriam capazes de o fazer rapidamente, de forma tão estilizada. Em segundo lugar, algumas das partes são muito originais. A crítica de Kant, que Pedro Arroja considera no seu post, é sem dúvida uma. Mas mais ainda será a rejeição da dicotomia facto-valor e de valores intrínsecos e subjectivos, que, oferecendo uma potencial solução para o problema ser/dever-ser, permite construir o argumento de que os valores são objectivos. Ou o argumento de que a fundamentação da ética advém da vida.

A crítica de Pedro Arroja de que Rand, tal como outros, trata a vida e a sociedade como se Deus não existisse, está errada. O erro é que Rand não argumenta como os outros. Enquanto estes acabam inevitavelmente por cair na multidão como fonte da moralidade, como o próprio Arroja aponta, Rand é a primeira a criticar a "metafísica social"; isto é, a substituição da realidade pelo consenso social na origem de factos e valores. Sendo um dos problemas que confronta os liberais como justificar os fundamentos de teorias políticas sem recurso a Deus, como escreveu há tempos o Rui de Albuquerque, esta questão é importante. Ayn Rand sugere um potencial caminho para o problema.

O "argumento randiano" substitui Deus como pedra basilar do seu sistema, colocando a vida nesse papel. "Vida", aqui, não tem nenhum sentido transcendental. A base da ética objectivista assenta na observação deste valor básico comum a todos os indivíduos. Morta, uma pessoa não atribuirá valor a nada. A vida é uma condição necessária para a avaliação ética de escolhas e acções. Não é, contudo, uma condição suficiente. Uma pessoa pode subsistir ao nível mais básico, como um animal, mas só o uso activo da sua faculdade racional permite-lhe ter um entendimento de que escolhas e acções são conducentes à preservação da sua vida, no imediato e a longo prazo. No contexto de uma existência social, política, este entendimento é essencial. Temos assim que os principais contributos do cristianismo para a sociedade moderna*, o livre-arbítrio e a alma individual, permanecem válidos segundo o "argumento randiano", mesmo retirando Deus da equação. A primeira escolha que uma pessoa deve fazer é impreterivelmente a de viver. A sua sobrevivência não é automática. Acto contínuo, deve escolher e julgar as suas opções em função do impacto na sua vida. Isto é o exercício do seu livre-arbítrio. Além disso, a escolha é individual. A opção de fazer uso da faculdade racional não pode ser imposta. Uma pessoa pode, concebivelmente, escolher "não pensar", viver como um selvagem. Ou em qualquer patamar intermédio. Não existe aqui propriamente uma alma para salvar; mas há uma vontade individual de atingir, ou não, um grau de conforto consigo mesma.


* Pelo menos segundo a visão de Isabel Paterson, em The God of the Machine, que identificou três marcos fundamentais no caminho da barbárie para a sociedade moderna (leia-se democracia liberal e capitalismo): A descoberta da ciência pelos gregos, que possibilita a análise do conhecimento e, por extensão, da acção política; a descoberta do direito pelos romanos, que permite criar um sistema abstracto que pode defender o indivíduo da arbitrariedade do "poder"; e, por fim, e talvez mais significativo, a descoberta cristã da alma individual, cuja salvação depende de si própria e do seu livre-arbítrio.

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