Crónica do Migas
Beneath this mask there is more than flesh. Beneath this mask there is an idea, Mr. Creedy, and ideas are bulletproof.

19 dezembro 2006

 

Moral e Ditadura


Nos últimos dias, com o falecimento de Pinochet, têm sido discutidos os "méritos" relativos deste face a outros, como o seu antecessor Allende, o moribundo Fidel, entre tantos na galeria de horrores do autoritarismo, estatismo e colectivismo. É curioso ver alguns dos que normalmente são mais relativistas ou subjectivistas nas suas teorias de valores a terem posições absolutas na sua condenação do ex-ditador chileno. Isto significa uma de duas coisas: (1) ou na verdade não são tão relativistas como pensam (como eu já tinha argumentado aqui), ou (2) mudam de "abordagem" quando lhes convém. Nesta última categoria cabem aqueles que toleram Fidel e idolatram Chávez, contemporizando os seus actos e fechando os olhos aos seus crimes. Mas que condenam Pinochet sem apelo nem agravo.

É difícil relativizar os defeitos do regime de Pinochet face às evidências. Embora seja verdade que se deu um regresso pacífico à democracia, este processo demorou 16 anos. De igual modo, embora o seu regime tenha contribuido para o desenvolvimento de uma economia claramente superior às dos seus vizinhos, o homem abotou-se com dezenas de milhões de dólares através de uma rede de contas bancárias espalhadas pelo mundo e de lavagem de dinheiro, num exemplo de corrupção, nepotismo e favorecimentos pessoais. E isto antes de entrarmos em coisas mais fundamentais.

Como escreveu o Miguel n'O Insurgente, existem princípio absolutos (eu diria antes objectivos) que devem reger os juízos de valor relativamente aos regimes políticos. Embora seja verdade que a vida numa ditadura como a chilena (onde havia alguma liberdade económica) seria preferível à vida numa ditadura como a cubana ou norte-coreana, viver no regime de Pinochet teria sido, objectivamente, mau. Especialmente para alguém com ideias esquerdistas... Não tenho ilusões de que ao contrário, num regime marxista, eu seria das primeiras pessoas a ir recambiadas em camionetas durante a noite. E se este tipo de punição por "delito de opinião" estaria errado no meu caso, seguramente que também esteve errado no caso dos muitos opositores de Pinochet que foram mortos, torturados ou encarcerados - independentemente das suas ideias serem (na minha opinião) filosoficamente erradas. Cá pelo burgo, vivemos num regime misto, com abusos estatistas generalizados e, lamentavelmente, crescentes. Contudo, temos ainda assim um espaço sólido de liberdades civis e políticas não invadido pelo estado, o que nos permite opinar como entendemos. E essa é uma situação que muito prezo. Uma das grandes diferenças entre um liberal e um marxista é que o primeiro está disposto a lutar pelo direito do segundo a espalhar as suas opiniões, por mais disparatadas que sejam; o segundo não pode dizer o mesmo.

O argumento de que alguns dos opositores de Pinochet tinham eles próprios intenções de impôr um regime opressivo pela força não altera a natureza da repressão, apenas ajuda a contextualiza-la e, em situações muito limitadas, a explica-la. Existiram dois periodos no regime de Pinochet, com características próprias, que tornam o estatudo moral dos acontecimentos diferente em cada um deles. O primeiro é o tempo conturbado entre o momento do golpe no final de 73 e a estabilização da ordem pública já em 74. O segundo é o que foi desde aí até ao plebiscito cujo resultado levou ao fim do regime. De igual modo, entre os adversários mortos, existiram dois tipos: os resistentes armados, que combatiam o regime pelas armas, e os desarmados, que mesmo que eventualmente tencionássem pegar em armas, foram assassinados quando estavam indefesos. Isto permite definir os cenários abaixo:


Resistência Armada"Delito de opinião"
73/74: Estado de sítio/Guerra civilLuta mortal entre facções que pretendem tomar o poder pela força; Abusos cometidos no contexto da luta armada, mas ambos os lados dispostos a morrer pela sua causa
Inocentes apanhados no calor do conflito; Abuso de força pelas forças militares em relataliação cega e indiscriminada contra adversários
74/88: Abertura progressivaDefesa do status quo por parte do poder instalado; Direito de "resistência armada" perante abertura graudal fica com legitimidade questionável
Sem desculpa de "calor do conflito", abusos inaceitáveis das autoridades na repressão de adversários políticos

A "posta" já vai longa, mas o assunto tem matéria de interesse para continuar. Por isso deixo aqui as "cenas dos próximos capítulos": A razão pela qual acho interessante este tema prende-se com um conjunto de questões de difícil, ou pelo menos não-óbvia, resposta: Em que condições é moralmente certo pegar em armas para combater o status quo, iniciando o uso da força? Se um estado de direito resvala para o autoritarismo, que legitimidade permanece nas instituições do regime para resistir a uma sublevação armada?

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