Crónica do Migas
Beneath this mask there is more than flesh. Beneath this mask there is an idea, Mr. Creedy, and ideas are bulletproof.

14 janeiro 2009

 

Sete pecados mortais na análise do myZonCard


Desde a decisão da Autoridade da Concorrência de suspender a campanha myZonCard, da Zon Multimedia, muito tem sido escrito sobre o assunto. Deixando de lado aspectos como a justiça de legislação “anti-trust” em mercados sem barreiras políticas à entrada, uma observação breve do que foi escrito em defesa da decisão provisória, bem como do teor da queixa apresentada, mostra que estas assentam em argumentos que tipicamente padecem de (pelo menos) sete erros analíticos.

Erro #1: A promoção da Zon “inunda” o mercado com “milhões e milhões” de bilhetes à borla.

A promoção é pessoal e intransmissível, sendo destinada apenas aos titulares dos contratos. Face à demografia da clientela da TV Cabo, a quem se destina a promoção, o impacto previsto pelas pessoas que incorrem neste erro é substancialmente sobrestimado. 70% dos espectadores de cinema tem menos de 35 anos de idade. 54% são estudantes (e são estes os que vão mais regularmente ao cinema). É portanto razoável assumir que a maior parte destes não é titular de um contrato de TV Cabo. Dos restantes, muitos serão casais, possivelmente com filhos, gerando portanto mais bilhetes para além do grátis, elevando o preço efectivo. Por fim, como apenas cerca de 20% dos portugueses vai ao cinema regularmente, representando a maior parte dos bilhetes, conjugando com os dados anteriores, é notório que a maioria dos clientes da TV Cabo não vai ao cinema. Das duas uma: Ou não usarão o cartão, ou então usam e geram receitas adicionais para a Lusomundo (pelo menos alguns irão acompanhados, e outros tantos comprarão pipocas e/ou bebidas nos bares). Logo, o impacto provável até será (ou seria) positivo para o mercado como um todo.

Erro #2: A promoção da Zon é “dumping”.

“Dumping” implica o fornecimento de produtos abaixo do preço de custo. As salas de cinema têm um custo marginal reduzido, tendendo para zero (ou totalmente variabilizado como percentagem das receitas). A promoção só está disponível para certos clientes, com uma antiguidade mínima como cliente e apenas enquanto permanecerem como tal. Existem ainda outros factores para determinar o preço efectivo por espectador: Preço pago por acompanhantes não titulares de cartão, pois a maior parte das pessoas não vai ao cinema sozinha, bem como receitas adicionais (pipocas, bebidas, etc). Adicionalmente, os preços pagos pelos serviços da TV Cabo têm um custo significativo, regular, independentemente do uso do cartão. É provável que exista alguma compensação desta à Lusomundo Cinemas pelo acesso aos filmes. Logo, a promoção é na verdade “bundling”.

Erro #3: A Lusomundo é monopolista.

A Lusomundo Cinemas é o maior operador nacional, com cerca de metade dos espectadores/receitas. Em termos de salas, a Lusomundo Cinemas tem uma quota inferior, pois o mercado de exibição, para além das cadeias de cinemas, conta também com salas municipais e pequenos cinemas independentes (cada vez menos, é verdade, por falta de viabilidade económica, não por práticas predatórias dos líderes de mercado; muitas se calhar são subsidiadas). Este peso no mercado não constitui de modo algum um monopólio.

O cinema não é um recurso escasso e as barreiras à entrada no mercado são baixas, dependendo essencialmente de investimento de capital localizado (local e equipamento), acessível a qualquer investidor com vontade. O peso da Lusomundo neste mercado parece ser mais resultado de subinvestimento geral no mercado do que aspectos anti-competitivos. A abertura (ou aquisição) por parte da Lusomundo de novas salas nos últimos anos é o factor preponderante no aumento da sua quota de mercado (de 28 para 30 locais e de 158 para 206 salas, entre 2004 e 2008). No mesmo periodo, a UCI e NLC também cresceram (com aquisições, aberturas e aumento da rentabilidade). Os restantes players mantiveram ou definharam.

Erro #4: O negócio das salas de cinema é a venda de bilhetes para ver filmes.

Este erro é a razão pela qual Paulo Branco não é capaz de concorrer com a Lusomundo agora; quanto mais com a promoção… Há muito que a Lusomundo e as outras cadeias bem geridas perceberam que estão no negócio do entretenimento e da “experiência do cinema”. “Experiência” que é tipicamente social (em família ou com amigos), logo tendo a promoção um impacto muito menor nas receitas totais. Quem quer ver filmes pode vê-los em casa. Num sentido estreito, e óbviamente exagerado, os cinemas hoje em dia estão no negócio da venda de pipocas/bebidas, pois é delas que advém a maior parte dos lucros. É também expectável que muitos clientes que beneficiam da promoção aumentem a receita média por espectador por via das vendas nos bares.

Os cinemas são um negócio em que a localização é muito importante, daí a cada vez maior presença das maiores salas (multi-ecrã) em centros comerciais e de lazer. Mas a mera presença num desses locais pode não ser suficiente para o sucesso. Compare-se o (pelo menos aparente) sucesso de empresas como a Lusomundo, UCI e NLC com as falências dos cinemas Millennium (que, curiosamente, ou talvez não, também contavam com a gestão excelente de Paulo Branco).

Erro #5: A promoção da Zon só é possível por abuso de posição dominante.

O abuso de posição dominante pode materializar-se, neste caso, em subsidiação cruzada via “bundling”. As perdas incorridas no produto subsidiado têm de ser compensadas com rendas económicas no produto subsidiante. O exemplo da moda é a Microsoft com o Windows e o Internet Explorer: Oferece-se este último grátis, à custa de maiores receitas no primeiro possibilitadas pela sua quota de mercado “monopolista”. Ironicamente também se usa o exemplo do Windows e do Office, afirmando que a Microsoft tem receitas elevadas no Office, cujas vendas são potenciadas pelo “monopólio” do Windows, sendo este vendido mais barato do que poderia ser o caso, mas com receitas compensadas pelo outro. Esta aparente contradição entre o Windows ser mais barato ou mais caro do que devia, consoante o exemplo, existe porque a verdade é que a acusação de abuso de posição dominante por parte da Microsoft está algo mal contada (mas isso são outros quinhentos e não conta para este assunto).

No caso da Zon, o primeiro argumento seria que a TV Cabo está a abusar da sua posição no cabo para restringir a concorrência no mercado da Lusomundo. O erro deste argumento está no facto de não existirem rendas económicas a explorar no cabo. Alternativamente, poderia-se argumentar que a Zon estaria a abusar da sua posição na exibição para condicionar o mercado do cabo. Também aqui seria preciso demonstrar que o benefício marginal no cabo pela fidelização seria usado para compensar a alegada quebra de rentabilidade na exibição; e que de alguma forma esse benefício tinha suficiente peso para, à luz da legislação, distorcer o mercado do cabo. Inverosímil, especialmente porque a queixa foi apresentada pelos concorrentes da Lusomundo Cinemas e não da TV Cabo.

Erro #6: A promoção da Zon acabaria por restringir o mercado de cinema.

A Zon não tem interesse no desaparecimento da sua concorrência no mercado da exibição, na medida em que o seu negócio de distribuição, lucrativo e importante, depende dela também. Hipoteticamente, até lhe poderia interessar esse desaparecimento desde que tivesse uma rentabilidade maior na exibição que permitisse manter o nível de vendas na distribuição. Ora, isso seria muito difícil, ou mesmo impossível, se aceitarmos a ideia de que a promoção constitui abuso de posição dominante. Se existe subsidiação cruzada dos bilhetes de cinema por parte da operação de cabo, então a Lusomundo Cinemas não terá receitas para pagar à Lusomundo Audiovisuais. Logo, as receitas de distribuição ficam dependentes das outras salas. As tais que supostamente ela quer que desapareçam. Seria uma proposta que apenas resultaria na destruição de valor para os accionistas da Zon. Logo, inverosímil.

Acresce ao ponto anterior que o mercado não é homogéneo. Os clientes que vão ver os filmes “de qualidade” na Medeia não são os mesmos que vão ver blockbusters na Lusomundo. A ideia de que a Medeia não sobreviveria é curiosa. Se actualmente os filmes “de qualidade” não são rentáveis nas condições de exploração actuais, sendo subsidiados pelos blockbusters que a Medeia também exibe, isso não é argumento válido para defender que haveria uma restrição da oferta. Não há razão objectiva para que os preços de cinema tenham de ser iguais. A Medeia poderia (deveria) aumentar os preços para os filmes com menores audiências, para manter a viabilidade económica do negócio. Se o mercado não comporta esse aumento, então o mercado não comporta este tipo de filmes. Ponto. Não é legítimo colocar coercivamente uma “taxa escondida” sobre os restantes consumidores de cinema para preservar esse mercado inviável.

Erro #7: A Zon é a única empresa que pode fazer este tipo de promoção.

A Zon é uma holding; e cotada na bolsa. A Lusomundo e a TV Cabo são empresas diferentes, com estruturas de custos e salários para pagar. A ideia de que se pode queimar dinheiro numa delas para beneficiar a outra é portanto complicada. Além disso, nem sequer existe uma grande sinergia entre o negócio do cabo e o negócio da exibição. Pelo contrário, o cabo tem um efeito negativo na exibição.

O raciocínio por trás deste erro é parecido com o que é usado quando uma empresa compra outra a jusante na cadeia de valor, como se fosse um cliente cativo, ou uma a montante, para poder ser fornecida em melhores condições. Em mercados minimamente competitivos estes raciocínios raramente fazem sentido, pois a relação accionista acaba por reduzir pressão competitiva. Em suma: Se a promoção faz sentido, então faz sentido para quaisquer duas empresas, independentemente da relação accionista. Se não faz, então a concorrência não deveria preocupar-se, pois assim sendo ela não durará muito tempo.

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