Crónica do Migas
Beneath this mask there is more than flesh. Beneath this mask there is an idea, Mr. Creedy, and ideas are bulletproof.

04 fevereiro 2007

 

Racionalismos que a Razão desconhece


Neste post sobre relativismo moral, João Miranda escreve:
"Como já explicou aqui o Pedro Arroja, a partir do momento em que se aceita que a ética tenha base racional, abre-se a porta para que as premissas fundamentais do sistema ético sejam o resultado da vontade de quem as escolhe."
A "explicação" referida relaciona-se com estes (1,2,3) posts no Blasfémias. Coloco o termo entre aspas porque na verdade não penso que Pedro Arroja tenha explicado o que lhe é atribuído. Quanto mais não seja porque essa afirmação ou é uma tautologia ou uma contradição nos termos, dependendo de como se definem os conceitos. Além de que as suas ideias perdem clareza quando fala de Ayn Rand, de quem parece ter uma qualquer pet peeve. Em vários posts nos últimos meses referiu Rand em termos críticos (talvez mesmo cáusticos); sem, no entanto, apresentar argumentos críticos fundamentados às suas ideias - referir o affair idiota que ela teve com um homem 25 anos mais novo não me parece a melhor forma de questionar a "Moral Racional" do Objectivismo. Ainda por cima porque existem pontos perfeitamente passíveis de crítica no pensamento de Rand, bastava ter escolhido um deles.

Mas voltando ao que interessa. Se aceitarmos que a realidade existe e que a podemos perceber, pelo menos em parte, através da nossa faculdade racional alimentada pelos nossos sentidos, e que esta, mesmo que falível, não altera a natureza da realidade, temos base para avançar. Quem não concorda escusa de ler o resto. Pode ir ali a baixo atirar-se para a frente do primeiro autocarro que passar. Com um bocado de sorte pode ser que tudo seja uma ilusão e o autocarro na verdade não esteja lá.

Definição Importante Nº 1: Razão é a capacidade que um ser humano tem de perceber e sistematizar a realidade. Não é: (i) A "certeza/correcção", como por exemplo na frase "o Pedro tem razão e tu estás errado"; (ii) A "verdade/nirvana", como por exemplo na frase "o Zé Manel está a meditar no Tibete para alcançar a Razão".

Definição Importante Nº 2: Moral Racional (objectivista) é um código ético que pode ser explicado racionalmente e que está dependente do contexto e do sujeito na avaliação dos valores. Não é: (i) o Racionalismo de Platão, Descartes, Kant ou outro qualquer; (ii) um código intransigente que uma vez identificado se impõe a todos; (iii) um código à la carte onde cada um escolhe as suas premissas.

Nos dois extremos clássicos do debate sobre a natureza dos valores temos de um lado intrinsicistas, que acham que as premissas fundamentais a que se refere o João Miranda são reveladas ou descobertas, quer por intervenção divina, pela "tradição" ou "história"; do outro os subjectivistas/relativistas, que acham que essas premissas fundamentais dependem de cada indivíduo (hedonistas), ou que são indiferentes ou impossíveis de determinar (nihilistas). Adicionalmente, há os objectivistas, que rejeitam ambas as posições clássicas (mais detalhes aqui, aqui e aqui).

Por definição, os intrinsicistas não aceitam a ideia de uma base racional para a ética. A citação acima do João Miranda não se aplica a eles. Sobram os relativistas e os objectivistas.

Para os relativistas, a base do seu sistema ético é por definição o resultado da sua própria escolha, caso contrário não eram relativistas. Logo, a citação acima é tautológica. Isto aceitando que os relativistas partem de uma base racional e não emocional, aleatória ou caprichosa na sua concepção da ética.

Já para os objectivistas, as premissas fundamentais terão de ter as raízes na realidade. Isto é, os valores estão alicerçados em factos observáveis e inteligíveis graças à nossa capacidade racional. Por isso, a citação é uma contradição nos termos. Para eles, as premissas não são matéria de escolha. A sua grande diferença para o intrinsicistas, contudo, passa pelo reconhecimento de um elemento subjectivo que tem um papel no ranking relativo dos valores. Ou seja, a natureza de "bem" ou "mal", ou de "certo" ou "errado", é objectiva; mas a importância relativa na comparação directa entre dois valores diferentes depende do contexto do sujeito avaliador.

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Bocas:
decidi continuar a conversa aqui.

"Razão é a capacidade que um ser humano tem de perceber e sistematizar a realidade"

isto é uma definição bastante restrita. o certo é que a razão tem um valor de certeza, correcção e verdade. já com o nirvana, não tem nada a ver. de facto. mas quando você diz, por ex., a biologia é um conhecimento racional, racional aqui tem um valor de certeza, correcção e verdade.

"Moral Racional (objectivista) é um código ético que pode ser explicado racionalmente e que está dependente do contexto e do sujeito na avaliação dos valores."

A moral cristã pode ser explicada racionalmente. aliás, foi isso que fizeram os padres da igreja (sto. agostinho, sto tomas de aquino). o que não faz dela uma moral racional , porque deus é o garante. mas mesmo assim a sua definição não me parece correcta. e depois do racionalismo de kant faz parte uma moral racional, sim.

e já agora, desculpe-me a ignorância: o que são "intrinsicistas"?
 
Certeza, correcção e verdade, argumento eu, terão mais a ver com a lógica. A razão permite-nos aplicar e sistematicar a aplicação da lógica.

Admito que a definição é restrita. O objectivo é mesmo esse, no contexto da utilização errónea do conceito por parte do Pedro Arroja nas suas críticas (superficiais) ao Objectivismo de Rand.

Quanto à moral cristã ser explicada racionalmente, de acordo. E também de acordo na questão da "garantia divina" - o tal elemento metafísico (ele usa a palavra "transcendente") de que fala o João Miranda.

Note que eu coloco em parenteses "objectivista". Na verdade não me preocupo muito com a moral cristã neste caso. O meu objectivo é clarificar as definições de forma a explicar adequadamente o objectivismo sem risco de confusão semântica.

E por fim "intrisicista": Intrinsicista é quem acredita que a natureza dos valores é intrínseca e independente do sujeito avaliador. Tipicamente, a moral religiosa é intrínseca, pois os valores são revelados por Deus.
 
"Certeza, correcção e verdade, argumento eu, terão mais a ver com a lógica. A razão permite-nos aplicar e sistematicar a aplicação da lógica"

A forma como fala da razão parece que se trata de uma entidade que paira sobre as nossas cabeças.

claro que certeza, correcção e verdade têm a ver com lógica, tal como a lógica tem a ver com a razão. Como diria kant, a lógica (tal como a matemática) é o exercício da razão pura.

tenho pena, que não tenha dito nada quanto à moral racional kantiana.

e também não percebo que tipo de confusão semântica pode haver na explicação do objectivismo.


Quanto ao "intrinsicista" (palavra horrível) não será melhor utilizar "intrinsecista" ou "intrinsequista", já que se refere a posições como as do Robert Nozick e à noção de valor intrínseco?

mas deixe-me que lhe diga que não concordo nada consigo quando, diz que "tipicamente, a moral religiosa é intrínseca", pois como você muito bem diz "os valores são revelados por Deus".

e aliás, tanto é assim que platão escreveu um diálogo sobre isso: o êutifron. e qual era a questão? x é errado porque Deus pensa que x é errado ou Deus pensa que x errado porque x é errado?

se uma coisa é má porque deus diz que ela é má (teoria dos mandamentos divinos) então ser mau não é intrínseco a essa coisa.

espero ter sido claro.
 

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