Crónica do Migas
Beneath this mask there is more than flesh. Beneath this mask there is an idea, Mr. Creedy, and ideas are bulletproof.

19 julho 2006

 

Pecado Original


Podemos debater se a reacção de Israel aos ataques do Hezbollah e do Hamas é desproporcionada ou não. Lembrar-nos-emos dos gestos recentes no sentido da paz por parte de Israel, como a retirada de Gaza e de alguns colonatos na Cisjordânia, e de como os árabes da Palestina retribuiram votando no partido mais radical e que não quer a paz. Mas logo depois teremos de nos lembrar que nos anos antes disso os israelitas recusaram-se a negociar porque não gostavam do interlocutor - a Fatah de Arafat - que apesar de tudo era menos radical que o que resultou das eleições.

Claro, que esta recusa teve origem nos ataques contra civis que esse interlocutor indesejado não foi capaz, ou não quis, controlar. Mas não nos podemos esquecer que esses ataques só ganharam fôlego quando os israelitas resolveram eleger Sharon e o seu Likud em vez de Barak. E obviamente, sabemos que essa eleição ocorreu por causa de ter tido início a "segunda intifada", que por sua vez teve como causa próxima a visita provocatória de Sharon ao Monte do Templo e a incapacidade de Barak e Arafat em chegarem ao acordo que tinha estado tão perto.

Porque não chegaram eles a acordo? Barak, por um lado, tinha medo de perder as eleições - o que veio a acontecer de qualquer modo. Arafat achou que podia esticar a corda um bocadinho mais, embora também estivesse pressionado pelos radicais do Hamas e da Jihad Islâmica, bem como outros dentro da sua própria Fatah. Foi frustrante. Por um lado Israel tinha votado em Barak para o lugar de Netanyahu justamente para obter a paz que tanto queria. Por outro, essa boa vontade não tinha sido recompensada com flexibilidade do lado árabe.

Mas será que podemos compreender esta inflexibilidade árabe? Bem, o anterior governo de Netanyahu tinha voltado atrás nos compromissos dos acordos de Oslo. Israel escolheu um primeiro-ministro cujo programa eleitoral era justamente diminuir o ritmo nas cedências aos árabes. Afinal, apesar dos acordos, estes últimos ainda tinham entre eles quem não desejava a paz e sabotava activamente o processo. Aqui, teremos de nos lembrar também que radicais existem dos dois lados. Foi um judeu fundamentalista que assassinou o primeiro-ministro Rabin, como retaliação por este ter assinado o acordo com Arafat.

Sim, mas essa potencial paz com os árabes palestinianos era ilusória. Afinal de contas a norte da fronteira estavam as milícias do Hezbollah, armadas pela Síria e pelo Irão. Estes tipos nunca aceitaram a existência de Israel. Contudo, não nos podemos esquecer que o surgimento deste movimento radical xiita se deve em grande medida ao vazio resultante do exílio da OLP para fora do Líbano e do poder militar obtido pelos Falangistas, que eram, imagine-se, apoiados tanto pela Síria como por Israel, conforme o vento. E não nos podemos esquecer das atrocidades em Sabra e Shatila. Claro, também é verdade que Israel só se meteu no Líbano por causa dos ataques constantes da OLP ao seu território. E que antes de Sabra e Shatila também muitos cristão foram massacrados por árabes na guerra civil do Líbano, por exemplo em Damour. Pois, mas antes de Damour tinha havido Karantina; antes de Karantina outro qualquer; e no princípio de tudo consta que foram uns tiros num casamento que provocaram as matanças subsequentes.

Enfim, a verdade é que se não fosse a presença da OLP no Líbano, não teria sido necessário a invasão por Israel. Por outro lado, a OLP só foi para lá por causa dos problemas na Jordânia, cujo rei queria paz com Israel e da invasão da Cisjordânia. Mas, pensando melhor, que necessidade havia de Israel invadir a Cisjordânia? E a península do Sinai? E os montes Golan? A resposta é que face à atitude permanentemente beligerante dos estado vizinhos, Israel precisava de algum espaço vital para garantir a sua segurança. E também havia quem achasse que se podia construir o "Grande Israel", ocupando as terras bíblicas do judaismo. Mas apesar de tudo era uma minoria.

Chegados aqui, temos de debater porque é que a situação sequer se colocou. Porque é que os estados vizinhos não aceitavam a existência de Israel? Afinal de contas, até havia um plano das Nações Unidas que previa a existência de dois estados, lado a lado. Pois, mas os árabes não aceitaram. Alguns dirão que isto mostrou falta de boa vontade, outros que foi uma imbecilidade estratégica, outros lembrarão que até nessa longínqua fase já existiam árabes radicais como o Mufti de Jerusalém, que chegou mesmo a colaborar com os Nazis. Mas aqui, e olhando para o plano da ONU, não podemos deixar de ver que a distribuição de terras entre os dois estados era algo desigual face à população. E ainda por cima ficavam alguns árabes sob jurisdição do estado judaico, o que era complicado. Também há o facto de que os restantes estados vizinhos encorajaram a rejeição do plano porque tinham eles próprios ambições sobre o território.

Aqui talvez possamos discutir que os judeus não podiam ser penalizados por terem tornado as suas terras mais atractivas com o seu trabalho. Houve muita imigração árabe para aquela parte da Palestina justamente porque os judeus estavam a criar postos de trabalho e a desenvolver a terra. Mas também é verdade que os árabes podiam argumentar que a terra era deles haviam séculos e que se lá estavam mais de um punhado de judeus foi por terem imigrado para lá. Ainda por cima tinha havido a Declaração de Balfour, que defendia a criação de um estado judaico na Palestina, o que era difícil de digerir. Mas, por outro lado, também tinha havido alguma cooperação durante o início do século entre árabes e judeus, cada lado querendo a sua auto-determinação num ambiente de entendimento. Contudo, os ingleses tinham prometido auto-determinação aos árabes e depois tinham voltado atrás o que deixava um sabor amargo, havendo um aparente favorecimento do lado judeu.

Não nos esquecendo na nossa própria educação, lembrar-nos-emos da ligação histórica dos judeus à Palestina. Jesus nasceu em Belém, na Galileia. Toda a história antiga judaico-cristã tem a base naquele bocado de terra. Mas, por outro lado, também é verdade que até ao século XIX, o número de judeus que permanecia ali era irrisório. Foi com autorização do Império Otomano que se iniciou a imigração em grande escala para lá. Mas então a culpa será do turcos? Não, na verdade o desejo de uma nação judaica no seu berço deverá vir das inúmeras perseguições que este povo sofreu ao longo dos tempos. Se eles não viviam lá foi por causa do Império Romano que sucessivamente os perseguiu e expulsou, há quase 2000 anos, condenando-os à diáspora.

Chegados aqui, podemos continuar na procura de causas próximas e remotas. Inevitavelmente chegaremos à conclusão que a culpa é de Caim ter morto Abel. Altura em que debateremos até ao absurdo se Caim era judeu ou árabe.

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Bocas:
Excelente análise, que subscrevo inteiramente.

Enquanto se persistir em vontades de resolver problemas que são intrinsecamente de direito internacional e de arbítrio entre nações soberanas pela força das armas, e por tentar fazer valer juizos morais primários e de "simpatias", de "causas justas" e de "direitos adquiridos", este vai ser o paradigma do imbróglio em termos de direito e relações internacionais que nos vai acompanhar por muitos e longos anos.

Pelo menos até alguma das partes perder a razão e transformar a zona num deserto nuclear inabitável por todas as partes.
 
Muito bom. Parabéns.
 

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