Crónica do Migas
Beneath this mask there is more than flesh. Beneath this mask there is an idea, Mr. Creedy, and ideas are bulletproof.

14 outubro 2008

 

"Nacionalizações"


A conversa recente sobre as “nacionalizações” de bancos está assente em alguns equívocos. Compreende-se que o camarada Jerónimo e os restantes últimos moicanos comunistas estejam tão contentes e sugiram mais “nacionalizações”. É também giro ver os órfãos socialistas sair do armário e mostrar que as suas posições pró-mercado eram apenas conversa de conveniência. Mas seria melhor analisar o fundo da questão em vez de disparar epifanias sobre “nacionalizações” a torto e a direito. Os acontecimentos sucessivos nos mercados de capitais são resultado de intervenções estatais passadas; e a cada nova intervenção, criam-se as condições para a inevitabilidade de intervenções futuras.

Nos últimos dias, o governo do Reino Unido anunciou a sua entrada no capital de vários bancos britânicos, o que tem sido apelidado de “nacionalização parcial”. De igual modo, o Tesouro americano indicou que deverá tomar uma medida semelhante nos Estados Unidos. Estes movimentos são explicados por uma necessidade dos bancos equilibrarem os seus balanços, levantando capitais próprios. A deterioração dos balanços, por sua vez, é explicada por:

Nos Estados Unidos, as government sponsored enterprises (GSEs) Fannie Mae e Freddie Mac foram especialmente afectadas por esta situação, por representarem cerca de metade do mercado. (Durante 2008, com todos os problemas de crédito dos restantes bancos americanos, o seu peso cresceu ainda mais, com 80% das novas hipotecas nos Estados Unidos tendo sido underwritten pelas duas GSEs.) Por serem tão importantes para o mercado hipotecário e por serem o veículo preferencial para a política de habitação do estado federal americano, este último assumiu o controlo das GSEs, tornando explícita uma garantia sobre as dívidas destas entidades que sempre existiu implicitamente. Isto foi feito através da injecção de capital em troca de acções preferenciais. As acções ordinárias e preferenciais pré-existentes continuaram a existir e a ter os mesmos donos, mas viram os seus dividendos suspensos e ficaram subordinadas às acções preferenciais do governo. O resultado desta operação tornou ainda pior a situação dos restantes bancos. Na verdade, muitos deles tinham acções das GSEs. O write-off obrigatório no valor destes investimentos reforçou o efeito de deterioração dos seus balanços, já de si afectados pela desvalorização do imobiliário e pelos incumprimentos hipotecários.

Em condições normais, o reforço dos balanços seria conseguido através de ofertas públicas em bolsa, emissão de direitos, etc. No entanto, uma conjugação de factores dificulta esta via. Em primeiro lugar, os investidores estão a afastar-se das bolsas, levando às suas quedas. As quedas, por sua vez, reforçam um ambiente de desconfiança e incerteza, incapaz de atrair investidores. Temos um ciclo vicioso. Apenas o tempo curará este problema; mas o tempo urge para os bancos, pois os seus balanços têm de ser reforçados já. Em segundo lugar, as atitudes dos governos relativamente aos bancos em dificuldades, ou melhor, aos seus accionistas, também não é conducente a um ambiente de confiança.

No Reino Unido, os exemplos do Northern Rock e do Bradford & Bingley são paradigmáticos. Durante 2007, o Northern Rock teve sérios problemas de liquidez, causados pela crise subprime, tendo de recorrer a empréstimos de emergência do banco central e (péssima ideia) do Tesouro britânicos. A situação continuou a deteriorar-se. O CEO foi corrido e sucederam-se ofertas de compra do banco por outras entidades. O governo britânico fez saber que não permitiria que o banco fosse comprado por outra entidade sem que os interesses dos contribuintes (os tais empréstimos de emergência) ficassem salvaguardados. Surgiram assim duas opções ao governo britânico: (1) deixar o Northern Rock entrar em processo de falência ou recuperação de empresas; (2) nacionalizar o banco.

A primeira opção poderia resultar em imediatos prejuízos para o erário público (write-offs nos empréstimos de emergência). Tinha ainda a complicação de o Northern Rock ter uma relação complexa com uma entidade off-shore com quem se tinha comprometido a fornecer hipotecas de qualidade. Se estas não fossem fornecidas, o banco teria de indemnizar a entidade, piorando a situação dos restantes credores. O governo, ao contrário de outros credores, tem acesso à airosa opção de se tornar dono do devedor sem ter de o fechar ou liquidar. Foi isso que fez.

Em 2008, o Bradford & Bringley foi a vítima que se seguiu. Também foi tentada uma aquisição por outra entidade. Tendo isto falhado, as autoridades britânicas decidiram também “nacionalizar” o banco. Ao contrário do caso Northern Rock, desta vez a decisão foi de liquidação e fragmentação do banco. Os balcões e depósitos foram vendidos ao Santander. As hipotecas estão a ser absorvidas por outros bancos. Os actuais accionistas deverão acabar por ficar sem nada, ou muito pouco, depois de terem entrado com 400 milhões de libras num aumento de capital em Julho. O mesmo deverá ocorrer aos accionistas do Northern Rock. O governo, no entanto, deverá recuperar a maior parte dos empréstimos de emergência feitos antes da situação estoirar definitivamente.

Note-se que se os bancos tivessem falido sem intervenção governamental, os accionistas possivelmente também teriam ficado sem nada. Mas o estigma da responsabilidade estaria com eles e não com o governo. A ideia de decisive action que Brown, no Reino Unido, e Bush, nos EUA, quiseram mostrar, serviu apenas para semear a desconfiança nos investidores: Valerá a pena acompanhar aumentos de capital nos bancos se na eventualidade deles serem insuficientes o governo vai intervir e eles perdem tudo? Essa é a questão que os investidores colocam, legitimamente, e que faz com que surja (como inevitável) a necessidade do próprio governo ter de adquirir acções dos bancos que precisam de reforçar o balanço.

A ideia do “Plano Paulson”, aprovado recentemente nos EUA, é de o Tesouro comprar os títulos de hipotecas de cobrança duvidosa (a um preço superior ao seu actual valor) para reforçar o balanço dos bancos. Dificilmente tal solução pode dar bom resultado: Cria-se um incentivo perverso no sistema ao recompensar quem assumiu riscos irresponsáveis à custa dos contribuintes. A aparente mudança de direcção, com entradas no capital, acaba por ser menos negativa para eles. Resta saber, no entanto, quais serão as consequências futuras de mais esta “intervenção inevitável”; quais serão as “intervenções inevitáveis” que virão?

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