Crónica do Migas
Beneath this mask there is more than flesh. Beneath this mask there is an idea, Mr. Creedy, and ideas are bulletproof.

03 janeiro 2007

 

A Filosofia do Poder


Não gosto nada da expressão "Grande Estadista". É daquelas frases que o spell checker do MS-Word devia corrigir automaticamente para "Grande Estatista". Um estadista só se torna grande se, entre outras coisas, passar uma quantidade significativa de tempo no poder. E isso não é bom. Não só na perspectiva de Lord Acton de que o poder corrompe, mas também na visão de Frank Herbert de que o poder atrai os corruptíveis.

Outro grande inconveniente desta expressão é que ela materializa uma "filosofia de poder" que assenta no centralismo do poder e na atribuição deste a uma elite iluminada ou predestinada à governação. Esta filosofia vem de longe e vê-se pela própria etimologia dos sistemas políticos como sistemas de poder, ou "-cracias", como a aristocracia, plutocracia, autocracia, democracia, etc. A observação tautológica de Churchill de que a democracia é o pior sistema possível se excluirmos todos os outros não ajuda; vinda ainda por cima de quem vem, um dos tais "Grandes Estadistas"...

Mais importante que saber a forma de "-cracia" que menos estragos causa à liberdade é perceber a necessidade de uma mudança de paradigma. De uma óptica de concentração de poder para uma de difusão. Para isso são necessárias três vertentes: (1) governos centrais limitados a funções essenciais à comunidade alargada/federal ou estado-nação; (2) descentralização através de uma restituição de poderes a comunidades naturais como municípios ou regiões formadas por associações voluntárias de municípios; e (3) transparência na relação entre os serviços prestados pelos orgãos de poder e o seu financiamento. Estas três vertentes estão intimamente relacionadas e não é possível levar a cabo duas delas sem a terceira; muito menos apenas uma:

1) Sem descentralização não é possível o governo central ser efectivamente limitado, pois a super-estrutura torna-se demasiado complexa. De igual modo, um governo central sobrecarregado de poderes e responsabilidades torna-se opaco no financiamento das suas actividades.

2) Sem transparência no financiamento, e por conseguinte, sem responsabilização dos eleitos perante os eleitores, a descentralização não é efectiva; sem responsabilidade fiscal, os poderes locais deixam de responder pela forma como gastam o orçamento. De igual modo, a falta de transparência incentiva a corrupção e abuso de poder, consequentemente facilitando uma deriva de power creep no governo central.

3) Sem um governo central limitado, criam-se duplicações de responsabilidades com os poderes locais ou regionais e uma matriz multi-dimensional de entidades, funções, tutelas e serviços que impedem a descentralização e aproximação entre eleitos e eleitores. De igual modo, a não limitação dos poderes do governo central impede a identificação directa entre financiamento e serviço prestado, pois se serviços duplicados implicam uma duplicação dos custos, serviços duplicados com super-estruturas de coordenação administrativa implicam uma triplicação...

A não implementação destas três vertentes, logo o proseguimento de uma abordagem centralista, leva a prazo à consolidação de uma tendência, lenta mas segura, de crescente autoritarismo do estado e de uma efémera procura de "Grandes Estadistas". A "Ordem" resultante, inimiga da liberdade, está sempre longe dos cidadãos, incentivando conflitos e ressentimentos: desigualdade de tratamento perante a lei; benefícios indevidos obtidos por favores políticos de pessoas que não respondem diretamente perante os eleitores; criação de mecanismos perniciosos de subsidiação de um grupo às custas de outro; etc.
"Involuntary order breeds dissatisfaction, mother of disorder; parent of the guillotine. Authoritarian societies are like formation skating. Intricate, mechanically precise and above all, precarious. Beneath civilisation's fragile crust, cold chaos churns..." - Alan Moore in "V for Vendetta (Book 3)"
Nota: Comecei a preparar este post dia 26, depois de ter passado parte do dia de Natal a tentar persuadir a família a ser menos estatista :-) Num extraordinário exemplo de "ordem espontânea" blogosférica (ou eventualmente comunicação telepática, para os mais misticistas), têm-se conjugado nos últimos dias vários posts sobre assuntos relacionados com o que aqui escrevi em cima. Uma citação de Herculano postada pelo Carlos Novais. A sugestão de um novo referendo sobre a regionalização pelo Rui de Albuquerque. A contraposição da via "municipalista" pelo Carlos Novais e pelo André Azevedo Alves. As objecções à via tradicionalmente defendidada pelos partidos do status quo para a regionalização, pelo João Luís Pinto. E mais vários posts no Blasfémias e no A Arte da Fuga (que eu tenha visto, devem haver mais por outros sítios, certamente).

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Bocas:
Considerações precisas. Isto que descrevestes é exatamente o que vem o ocorrendo no Brasil. Você poderia me enviar referências sobre o assunto? vitorlaerte@gmail.com. obrigado.
 

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