Crónica do Migas
Beneath this mask there is more than flesh. Beneath this mask there is an idea, Mr. Creedy, and ideas are bulletproof.

16 janeiro 2007

 

Robert Locke e o "Libertarianism"


No blog da Causa Liberal, Patrícia Lança postou um artigo de Robert Locke onde este afirma que o libertarianism é o "marxismo da direita". O artigo foi publicado originalmente na revista The American Conservative, mas o seu tom assemelha-se mais aos "shouting matches" nos debates que por vezes são emitidos na CNN. O artigo é fraco, essencialmente por três razões: (i) confunde anarco-capitalismo com libertarianism, e por isso dispara na direcção errada; (ii) está pejado de falácias, argumentando pela via emocional e não pela racional; e (iii) simplifica demasiado as posições que critica, fugindo assim a ter de rebater de forma fundamentada os princípios destas, ou a ter de defender os seus.

Enquanto alguém que evoluiu de uma posição próxima do anarco-capitalismo para o minarquismo, próximo do liberalismo clássico, eu serei o primeiro a conceder que as facetas mais radicais do anarco-capitalismo têm sérios problemas práticos. O que não impede que aceite alguns dos seus valores e princípios, e que tenha o discernimento para perceber quais das suas facetas são partilháveis com o minarquismo e quais não são. Como tal, sou também o primeiro a contestar a ideia de que todos os libertarians são anarco-capitalistas. Locke começa por conceder que existem outros para além dos anarco-capitalistas; a quem ele magnanimamente chama de "least crazy". Mas depois deita tudo no mesmo saco e atribui ao todo as características da parte - uma falácia clássica.

Não quero perder tempo com as outras falácias presentes no artigo, pois as sugestões redutoras de que os libertarians são drogados, ex-socialistas e sexualmente depravados, e de que um "excesso" de liberdade conduz inevitavelmente ao alcoolismo, toxicodependência, incapacidade de manter o emprego e, lesa-majestade, "gravidez fora do casamento", são de um nível intelectual próximo da reality TV e não merecem resposta.

Substantivamente, existem três áreas no artigo de Robert Locke que eu quero analisar:

1. Valores

Locke acusa os libertarians de defender que a liberdade é a única "coisa boa", rematando no final com (negritos meus):
"But security, prosperity, and family are in fact the bulk of happiness for most real people and the principal issues that concern governments."
Ora, talvez os anarco-capitalistas tenham dúvidas sobre o papel do governo em garantir a segurança, mas a característica fundamental do minarquismo é justamente atribuir a função de garantir a segurança (incluindo o poder de fazer cumprir contratos) ao estado. Já a prosperidade é o fruto do trabalho dos indivíduos e não do estado; e a ideia de que a família é uma área de primordial intervenção do estado mostra bem as inclinações paleo-conservadoras de Locke - e que ele não se dá ao trabalho de defender ou justificar. Como é típico daqueles com uma perspectiva intrisicista da natureza dos valores, a verdade é revelada e não precisa de explicação. Isto torna-se mais claro logo à frente quando escreve:
"Therefore freedom, by giving us choice, supposedly embraces all other goods. But this violates common sense by denying that anything is good by nature, independently of whether we choose it. Nourishing foods are good for us by nature, not because we choose to eat them. Taken to its logical conclusion, the reduction of the good to the freely chosen means there are no inherently good or bad choices at all, but that a man who chose to spend his life playing tiddlywinks has lived as worthy a life as a Washington or a Churchill."
Na verdade, alimentos nutritivos não são bons em si mesmos, mas antes pelo efeito no sujeito que os ingere - se deles tiver necessidade. Da mesma forma, o valor de uma vida passada a jogar tiddlywinks dependerá da capacidade do jogador assegurar a sua subsistência com o jogo... Ou seja, a ideia de que só existe uma alternativa entre valores intrínsecos e subjectivos está errada. Os valores precisam de um sujeito que os "avalie", por um lado, mas mediante o contexto é possível definir objectivamente se são "bons" ou "maus".

2. Democracia

Locke argumenta que o facto de nenhum partido libertarian ter vencido eleições mostra que as pessoas não desejam a liberdade por eles defendida. Isso é verdade por definição. Mas não se aplica apenas aos anarco-capitalistas - aplica-se a qualquer partido ou movimento político que não caiba no molde mainstream da comunidade eleitora. As mudanças de mentalidade são difíceis e demoram tempo. Além de que a ideia de que a democracia legitima todas as escolhas está errada. Sem limites que defendam as minorias (e o indíviduo é a menor das minorias), a democracia reduz-se à "maralhocracia".

O exemplo mais gritante de que a democracia não resulta necessariamente nas melhores escolhas para um povo são as inúmeras ocasiões onde houve eleições segundo o modelo "um homem, um voto, uma vez". E não precisamos recuar muito no tempo para observar eleições cujo resultado é tudo menos positivo, como na Autoridade Palestiniana, com a vitória de um movimento terrorista, ou no Iraque, onde as pessoas votaram de acordo com a sua etnia em vez de fazerem escolhas políticas (votar no partido de determinada etnia não é uma escolha política, é uma escolha tribal).

Por fim, a sugestão de que dado o insucesso eleitoral do libertarianism, a sua única via para alcançar o "poder" é pela força, também não colhe. Se é verdade que toda a gente acha que sabe o que é melhor para os outros, a diferença é que os anarco-capitalistas, os minarquistas, os liberais e alguns conservadores não pretendem impôr coercivamente as suas ideias aos outros. O seu papel é contribuir para limitar a ingerência do estado na vida dos cidadãos, a começar na deles próprios. Ou como disse Ronald Reagan (insuspeito de ser um anarco-capitalista...):
"As nove mais aterradoras palavras na língua inglesa são: 'Eu sou do governo e estou aqui para ajudar'."
3. Economia

A terminar, Robert Locke refere-se a aspectos económicos do libertarianism, argumentando por uma lado que o Japão é uma economia altamente regulada e os japoneses não são menos ricos por isso, e por outro, misturando mais uma vez anarco-capitalismo com libertarianism, ao escrever:
"Many support abolition of government-issued money in favor of that minted by private banks. But this has already been tried, in various epochs, and doesn’t lead to any wonderful paradise of freedom but only to an explosion of fraud and currency debasement followed by the concentration of financial power in those few banks that survive the inevitable shaking-out."
No que toca ao Japão, Locke esquece, convenientemente, a recessão de mais de 10 anos que abalou o país desde meados da década de 90. E como o excesso de regulamentação e o excessivo peso do governo japonês na gestão do seu sector bancário (e não só) tornaram quase impossível sair do ciclo recessivo/deflacionário. Na verdade, a recuperação dos últimos dois anos é ainda incipiente. Também esquece que o crescimento comparativo do Japão foi o que foi na medida em que os paises com que este "concorria" no mercado global estavam a ser governados por keynesianos e marxistas inveterados (o Reino Unido pré-Thatcher, a América pré-Reagan, a Alemanha pré-Kohl); bem como que na altura o Japão era o low-cost producer, posição que perdeu irremediavelmente para os restantes países asiáticos desde o final da década de 80.

Quanto à questão da moeda, dizer que os libertarians defendem "dinheiro privado" é uma generalização incorrecta. Muitos defendem um regresso ao padrão-ouro, é verdade, mas entre isso e "dinheiro privado" vai uma grande distância. Mas não é este o ponto fulcral da questão. O curioso é a sua asserção de que as experiências com "dinheiro privado" levaram a fraude e debasement da moeda. Literalmente, debasement é o acto de diminuir o valor de uma moeda, por exemplo misturando mais prata com ouro, ou diminuindo surrepticiamente o tamanho ou peso da mesma. Na era moderna, o termo foi usado para descrever o acto de descer a taxa de conversão entre o papel-moeda e o contra-valor em ouro. Ora, na verdade, os mais escandalosos casos de debasement foram justamente os conduzidos pelos governos através do seu poder coercivo. Durante o século XX, a libra esterlina foi sucessivamente desvalorizada pelo governo britânico quando este unilateralmente desceu o contra-valor em ouro da libra, ou quando ocasionalmente abandonou o padrão (p.ex. no final da Primeira Grande Guerra). E isto nem sequer leva em conta as desvalorizações em moedas não ligadas ao ouro, como na Alemanha de Weimar ou na Argentina, onde os governos se entretinham a imprimir notas. Mas isso não interessa nada, os "privados" é que são maus. Se eu fosse como Robert Locke também chamava a isso uma forma de marxismo.

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Bocas:
Já dizia o Russel Kirk (e o Reagan): os libertários nunca conseguirão perceber a diferença entre governo e estado.
 

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