Crónica do Migas
Beneath this mask there is more than flesh. Beneath this mask there is an idea, Mr. Creedy, and ideas are bulletproof.

29 maio 2006

 

O Problema do Pendura


Se a Teoria de Jogos pode mostrar a eficiência de decisões distribuidas em determinadas circunstâncias, outras há em que o reverso é verdade. Um exemplo, muito usado para justificar a imposição de acção pelo estado, é o Freerider Problem, ou traduzindo desleixadamente, o Problema do Pendura.

O Problema do Pendura ocorre quando, dentro de um conjunto de N indivíduos, onde N é um número grande, cada um obtem benefícios para si por agir de uma determinada forma, desde que os restantes ajam exactamente ao contrário. É uma espécie de Dilema do Prisioneiro: se todos cooperarem, todos ganham; mas se apenas um não cooperar, o impacto para todos é negligenciável, mas para o individúo em causa permite-lhe beneficiar duas vezes, individual e colectivamente. O Pendura torna-se um problema a partir do momento em que o incentivo individual para não cooperar leve um número P de indivíduos, dentro do conjunto N, a não participarem no esforço colectivo, colocando em perigo os benefícios totais da cooperação.

Um exemplo é a poluição. Se todos poluirem indiscriminadamente, corre-se o risco de inviabilizar o habitat, pondo fim a um conjunto de actividades económicas e sociais numa dada região. Se todos se esforçarem para reduzir emissões poluentes, todos beneficiam pela optimização do uso dos recursos, pois podem manter a sua actividade económica e simultaneamente tirar partido de um ambiente limpo - que permitirá desenvolver mais actividades. Se apenas um indivíduo continuar a poluir enquanto os outros fizerem um esforço de limpeza, o custo em poluição será diluido por todos, mas o benefício será concentrado pelo poluidor.

Outros exemplos são a defesa e segurança pública. Todos beneficiam da protecção do estado contra “invasões estrangeiras”, ou da polícia contra marginais. No entanto, se houvesse a hipótese de alguns optarem por não contribuir para os sistemas de defesa e segurança, eles continuariam a tirar partido das contribuições dos outros - excepto se o tal número P fosse tão grande que inviabilizásse a massa crítica do sistema.

Os exemplos anteriores ignoram deliberadamente a possibilidade de múltiplas “iterações”. Isto é, as pessoas ao agirem ao longo do tempo constatam os efeitos de algumas decisões não eficientes e fazem coligações para que em repetições futuras do “jogo” o resultado final seja melhor.

Por estas razões, ou seja, por causa dos penduras, é que historicamente têm surgido movimentações, pacíficas ou violentas, espontâneas ou forçadas, contratualizadas ou decretadas, no sentido de criar mecanismos colectivos que permitam impedir o colapso da estrutura social sob o peso dos penduras. Algumas movimentações tentam preservar a liberdade dos indivíduos e simultaneamente impedir a estrutura social de entrar em colapso. É o chamado limited government. Outras são mais aglutinadoras e pretendem substituir-se à esfera individual na tomada de um grande número de decisões. Mesmo quando o Problema do Pendura não está comprovado.

Quando o governo deixa de ser limitado, entramos noutro tipo de Problema do Pendura. Deixamos de ter uma lógica de preservação da estrutura social para passar à acção colectiva enquanto instrumento de re-engenharia social. O objectivo deixa de ser a existência de uma sociedade que permita aos indivíduos agir livremente. Passa a ser a construção de uma sociedade que exige que os indivíduos ajam da forma que um conjunto limitado de indivíduos acha que eles devem agir.

Nesta situação, o problema é outro: o pendura quer que todos façam determinadas coisas pois isso permite que ele tire benefícios desse esforço colectivo sem ter de suportar o seu custo real. Neste caso o pendura funciona como aquele indivíduo que pede sempre o prato mais caro quando sabe que a conta do jantar é a dividir por todos. Se este comportamento se repetir em várias "iterações", corre-se o risco de se cair numa corrida entre os comensais para ver quem consome mais - é quando se começa a pedir Courvoisier e whiskey de 20 anos - levando a conta total a ser muito superior às expectativas iniciais dos participantes.

As políticas de intervenção estatal padecem do mesmo problema. Inicialmente, com boa vontade, apoia-se uma determinada causa, por exemplo subsídios à produção agrícola. Quando damos por isso, as exigências sobre o orçamento do estado são de tal ordem que o deficit torna-se crónico. Aumenta a dívida pública, os encargos financeiros seguem-se e entramos em catadupa.

O argumento é sempre o mesmo: X deveria ser uma prioridade nacional, logo, há que apoiar os seus promotores. Quer directamente, via subsídios, quer indirectamente, via benefícios fiscais, o que dá no mesmo em termos de efeito líquido sobre o orçamento do estado. O custo social total nunca é considerado, pois a diluição dos custos por todos os contribuintes é negligenciável.

Potencialmente mais grave é que o benefício pode ser em larga medida intangível, agravando ainda mais desequilíbrio entre custos e benefícios de uma determinada medida. É o caso das chamadas políticas "feel-good". Cabem aqui medidas de apoio a actividades artísticas ou desportivas. Um exemplo: O custo real de encenar uma peça de teatro do autor X é de K euros. O número total de espectadores previsto é de N. O custo dos bilhetes, ignorando outras receitas potenciais, deveria ser de K/N, acrescido de um custo de capital qualquer adequado ao risco do empreendimento. O problema é que K/N é muito superior ao que as pessoas estão dispostas a pagar, inviabilizando o projecto. Solução: o pendura sugere que o estado deve apoiar a iniciativa, subsidiando os bilhetes, por exemplo, em 50%. O benefício directo é dividido pelos N espectadores. Cada um tem um benefício de 0,5*K/N. Ao benefício directo junta-se o indirecto: os produtores e trabalhadores do projecto ganham pelo trabalho que sem o subsídio não teria sido possível. Mas acrescido a estes benefícios tangíveis, um conjunto de indivíduos (coincidente ou não com os N espectadores e com os produtores e trabalhadores) tirará um benefício intangível “feel-good”: serem “patronos” das artes.

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26 maio 2006

 

Terapia em Grupo


O nosso brilhante Ministro da Economia e Inovação (prémio a quem conseguir pronunciar o título do Sr. Ministro sem se rir) acha que os portugueses precisam de uma atitude mais positiva e vencedora.

Afirmou o Sr. Ministro: "Em Portugal precisamos de falar muito mais sobre vencer e desenvolver uma atitude vencedora (...) as pessoas pensam que já não é possível vencer mas isso não é verdade." E rematou com a seguinte pérola: "Sabemos que podemos mudar e de forma muito clara, os passos são os seguintes: um foco claro, acção e não ter medo, absolutamente sem medo."

Pelos vistos o Sr. Ministro acha que Portugal precisa duma Terapia em Grupo para vencer os seus medos. E claro, a melhor forma de conseguir isto é falar sobre o assunto; e enquanto falamos tudo continua na mesma e sempre se vão fazendo mais uns "investimentos" megalómanos financiados por todos nós. Mas acima de tudo, há que não ter medo.

O problema desta psicologia barata é que nos sai cara.

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Natureza Humana II


O JLP fez um interessante comentário ao meu post de ontem, que daqui agradeço. Pela importância do assunto, vou tentar clarificar a minha posição com novo post.

Começo por esclarecer que quando escrevi "É parte integrante da filosofia que fundamenta o liberalismo, pelo menos tal como o entendo, o princípio optimista de que os homens são potencialmente bons.", parti do ponto de vista que o "meu" liberalismo é de forma geral consistente com as ideias objectivistas que defendo nos campos da metafísica e ética. O liberalismo clássico tem efectivamente aspectos que podem não ser consistentes com o objectivismo na medida em que não tem pretensões a ser um sistema filosófico completo, como muito bem observou o Helder n'O Insurgente (não podia vir mais a propósito). De qualquer modo, existem alguns conceitos que seria bom clarificar, para termos a certeza de que estamos todos a falar da mesma coisa.

Em primeiro lugar, o que significa que "os homens são potencialmente bons"? Não se trata de uma visão utópica de uma sociedade ideal para onde caminhamos. Trata-se da observação da realidade tal como ela é: a maior parte dos homens não é dominadora e predatória dentro da sua espécie (doves). Há alguns que são, mas são uma minoria (hawks). E justamente por serem uma minoria, as comunidades humanas têm historicamente tido uma propensão para uma prudente benevolência na abordagem à interacção social. Esta benevolência é regularmente posta em causa pelos hawks que tentam dominar os doves, mas estas situações de conflito não invalidam a base benévola da natureza humana. Curiosamente, este equilíbrio de hawks e doves é observado também noutras espécies e explicado por teses que aplicam princípios de Teoria de Jogos à evolução, como a Evolutionary Stable Strategy de John Maynard Smith.

Em segundo lugar, o que é "ser bom"? Não se trata, aqui também, de uma visão utópica do "bem comum". Aqui entra a minha ética objectivista: o padrão pelo qual se mede o valor é o seu impacto para a preservação da vida. O rational self-interest é o padrão da condução ética da acção individual. Como referi antes, esta acção individual não pode por si só ser considerada um detrimento de um eventual "bem comum". Este foi um dos principais legados filosóficos de Adam Smith. Para as situações onde o "bem comum" não coincida com as acções individuais, podemos encontrar situações de excepção. Por alguma razão sou minarquista e não anarquista...

Por fim reforço que de forma alguma o socialismo é optimista em relação à natureza humana. Os socialistas nunca falam dos homens, falam do Homem, uma criatura que não existe mas que eles querem criar a força, estilo even if it kills you. É como escreveu o Dos Santos na caixa de comentários: "O problema é precisamente o facto de o socialismo querer criar uma nova identidade humana que é contrária à sua própria natureza." O altruismo não é nem parte da natureza humana nem é "ser bom". Para o altruismo ser padrão moral, isso implica que a desgraça alheia se torne uma condição necessária para atingir a virtude.

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24 maio 2006

 

Natureza Humana


Face a vários comentários do RicardoGF a um post seu sobre a imigração e a segurança social, o Luis Lavoura produziu um conjunto de afirmações que vieram, pelo menos para mim, confirmar a sua inefabilidade.

Citando dois ambientalistas (que em comum têm o facto de ser autênticos "profetas da desgraça" e preverem a falência do capitalismo) como fonte de influência nas suas opiniões, o Luis previu o fim do crescimento económico e o colapso da rentabilidade das poupanças; decretou a inevitabilidade da vida se tornar um zero-sum game; e defendeu uma bizarra dicotomia esquerda-direita em termos de percepção da natureza humana. Tudo isto ao mesmo tempo que confirma o seu conforto com o liberalismo e defende a "economia liberal" como o sistema mais moral.

Apesar destas múltiplas contradições darem "pano para mangas", vou apenas comentar o aspecto relativo à natureza humana. Parece-me que o Ricardo já disse o que tinha de ser dito nos seus comentários ao Luis no que toca à economia.

Afirmou o Luis: "Eu parece-me que [as pessoas serem fundamentalmente boas] é um princípio fundamental do esquerdismo, não do liberalismo. Em geral, os esquerdistas tendem a acreditar que as pessoas são fundamentalmente boas (altruistas), enquanto que os direitistas tendem a acreditar que as pessoas são fundamentalmente más (egoistas)."

Extraordinário como ele consegue dividir esta questão entre esquerda e direita. Curiosamente, depois desta afirmação, não disse qual seria a posição do liberalismo face à questão. Nem sequer a do Lavourismo. Presume-se que num campo que ele define de forma tão mutuamente exclusiva e colectivamente exaustiva, devem estar algures no intervalo fechado.

Por acaso até concordo que há uma parte da direita, mais conservadora, que tem uma visão pessimista da natureza humana. Uma perspectiva Calvin and Hobbes: Calvinista porque acredita no determinismo da vida e na inevitabilidade das coisas - mesmo quando não concorda com a ideia de que a salvação depende da "graça" e não da moralidade dos actos; Hobbesiana porque acredita na selvajaria natural dos homens, que viveriam num estado natural de guerra permanente se não existisse um "estado forte" para mantê-los na ordem.

Mas também há outra direita, mais liberal, que acredita na benevolência natural das pessoas. Uma visão que não deixa de ter uma curiosa, mesmo que parcial, confirmação por parte das mais recentes investigações sobre o funcionamento do cérebro, relativas à empatia com o sofrimento de outros indivíduos da espécie. No fundo uma versão literal, mas neste caso sincera, do Clintonesco I feel your pain.

Já quanto à esquerda, o Luis - tal como os seus gurus Hardin e Daly - está redondamente enganado. A esquerda, por definição, tem de acreditar na rasquice intrínseca da malta. Sendo os homens altruístas e bons (aceitemos aqui esta associação dos dois adjectivos apenas for argument's sake), que necessidade existe para todos os mecanismos de "estado ama-seca" defendidos pela esquerda?

De qualquer modo, o eixo sugerido pelo Luis não serve. A principal diferença em perspectivas sobre a natureza humana é entre o totalitarismo-colectivismo e o liberalismo. Na lógica de uma estratégia de poder totalitária, a crença na intrínseca maldade humana sempre serviu para algumas elites autocráticas dominarem as sociedades. É mais fácil subjugar os homens quando se consegue convencê-los de que são maus na sua essência, ou incapazes de viverem sem cair no caos. No fundo, fazendo-lhes crer que precisam da elite oligarca, da ruling class ou da protecção do tirano-opressor.

É parte integrante da filosofia que fundamenta o liberalismo, pelo menos tal como o entendo, o princípio optimista de que os homens são potencialmente bons. Que têm a capacidade racional para entender, na sua vida em sociedade, que existe um benefício tangível à cooperação e free-exchange, bem como ao respeito mútuo dos seus direitos fundamentais.

É evidente que existirão indivíduos desonestos e maus, tanto mais enquanto existirem sistemas sociais que criam incentivos a esses comportamentos. No entanto, é essencial abraçar o conceito de que cada indivíduo é capaz de agir eticamente de forma totalmente livre e voluntária, sem necessidade de uma "alta autoridade" que zele pela sua "pureza".

São os socialistas, comunistas, fascistas, nazis, radicais religiosos e outros totalitários que acham que, sendo os homens essencialmente maus, e incapazes de viver sem cair no caos e na lei da selva, existe a necessidade de criar um estado omnipresente que proteja os homens de si próprios.

Nota: Eu, copy-paster, me confesso. Alguns dos parágrafos finais neste post são tirados, embora ligeiramente alterados, de um comentário que fiz a um post do Henrique Raposo, há cerca de um ano, no entretanto encerrado Acidental.

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23 maio 2006

 

Money Makes the World Go 'Round


N’O Insurgente, o Miguel relembrou-nos o “discurso do dinheiro”, proferido pelo personagem Francisco D’Anconia do livro Atlas Shrugged, de Ayn Rand.

Esta brilhante defesa moral do dinheiro, enquanto potenciador das trocas entre homens livres e proxy do seu trabalho e criatividade é uma das melhores passagens de Rand. Embora as suas breves três páginas fiquem francamente aquém dos extensos “discursos” de John Galt (no mesmo livro) ou de Howard Roark (em The Fountainhead)...

Há alguns aspectos importantes sobre o dinheiro que não cabendo dentro do argumento moral de Rand não fazem parte do “discurso”, mas que convém também lembrar.

A invenção do dinheiro foi de extraordinária importância para o progresso da humanidade. Aqueles que constantemente amaldiçoam o dinheiro como sendo o “vil metal”, fazem-no a partir da sua cómoda vida que apenas é possível devido à existência do dinheiro. Antes, cada indivíduo e/ou família trabalhava para garantir apenas a sua subsistência directa, podendo, quanto muito, efectuar trocas directas com outros com a finalidade de alargar a satisfação das suas necessidades básicas.

Para além da facilitação de trocas , o dinheiro trouxe três enormes inovações que ainda hoje são os motores do nosso progresso: a capacidade de consumir “em diferido”, a capacidade de acumular riqueza e a capacidade de remunerar a divisão do trabalho.

O consumo “em diferido” libertou o homem da necessidade de se preocupar a todo o momento com a conversão da sua produção noutro bem; na maior parte dos casos, ambos perecíveis. O consumo estava assim ligado directamente à troca. Com dinheiro, o homem ficou livre para trocar a sua produção na altura mais conveniente e consumir apenas quando necessário.

A capacidade de acumular riqueza aumentou imensamente o seu bem-estar. Antes, o excesso de produção, que fosse para além das necessidades de consumo do homem e da sua família ou comunidade mais próxima, era desperdiçado. Com dinheiro, esse superavit passou a ser acumulado lentamente, podendo ser trocado na altura certa por outras coisas que não as necessidades básicas. A conjugação desta capacidade e da anterior permitiu distribuir ao longo do ano a produção de trabalho que muitas vezes era sazonal (p.ex. agricultura).

Por fim, a possibilidade de remunerar trabalho sub-contratado com dinheiro facilitou a divisão do trabalho, e por conseguinte, a sua especialização. Esta capacidade resultou em optimizações de processos produtivos e criativos, resultando em maior crescimento da criação de riqueza.

É um daqueles casos em que a lapalissada tem uma verdade profunda: Se não existisse dinheiro éramos todos mais pobres.

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22 maio 2006

 

A Mão Invisível da Mente Brilhante


Existem alguns conceitos de teoria económica de primordial importância no estudo da acção humana e política. Coisas como a já velhíssima Mão Invisível de Adam Smith e conceitos mais recentes da Teoria de Jogos. Outro dia dei comigo a pensar se não será a Mão Invisível uma instância de um Equilíbrio de Nash (bem sei, I should get out more). Afinal, se a teoria prevê situações em que os intervenientes num jogo têm incentivos à acção individual que maximiza os benefícios colectivos, então o equilibrio entre a oferta e a procura causado pela Mão Invisível deveria ser uma instância da teoria geral.

A Mão Invisível é na sua essência um argumento filosófico que resulta da observação da actividade económica: agentes que actuam racionalmente, procurando obter benefícios para si próprios através de transacções, acabam por beneficiar a comunidade a que pertencem como um todo, apesar de não ser essa a sua motivação. O exemplo associado a este argumento é o da obtenção de um preço natural no cenário de um mercado competitivo, algo que é empiricamente observável. O argumento tem um corolário irrefutável: a defesa do interesse individual não é, pela sua natureza, incompatível com a maximização dos benefícios para a comunidade.

Apesar disto, a Mão Invisível é regularmente contestada por críticos do capitalismo e dos mercados livres. Em especial quando defendem intervenções estatais cuja alegada finalidade é a de promoção do “bem comum”. Existem dois erros nas críticas habitualmente feitas à Mão Invisível: o primeiro é quando o argumento de Smith é virado do avesso, como se ele tivesse sugerido que toda a defesa dos interesses indivíduais fosse necessariamente benéfica para a comunidade; o segundo é que face à constatação de instâncias onde o equilibrio de interesses individuais possa ser prejudicial à comunidade, se conclua pela não existência das instâncias onde o reverso acontece.

Quase dois séculos depois de Adam Smith ter enunciado o argumento da Mão Invisível, John Nash publicou um paper sobre jogos competitivos onde sistematizou aquilo a que hoje em dia chamamos Equilíbrio de Nash: Uma solução para um jogo com N jogadores, onde existe uma situação de equilíbrio em que nenhum jogador individual tem incentivo a mudar a sua estratégia se os restantes N-1 mantiverem inalteradas as suas. Nash demonstrou matematicamente que para qualquer jogo finito, existe sempre pelo menos um Equilíbrio de Nash.

No filme “Uma Mente Brilhante”, baseado no livro com o mesmo nome sobre a vida de Nash, é apresentada a cena onde supostamente lhe terá surgido a inspiração para a teoria. Uma rapariga loira muito atraente, acompanhada de quatro amigas menos atraentes, entra no bar onde Nash e mais três colegas estão a conversar. Os colegas mencionam Adam Smith; que cada um deve preocupar-se apenas consigo; e preparam-se para meter conversa com as raparigas. Nash tem uma visão, e diz-lhes que Adam Smith estava errado; que a melhor forma de assegurar que todos saíssem dali acompanhados seria cooperarem. Se todos abordássem a loira, as amigas ficariam melindradas e nenhum deles levaria nem a loira nem as amigas. Se por outro lado, ignorássem a loira e concentrássem-se cada um numa das amigas, maximizariam as suas hipóteses de sucesso.

À boa maneira de Hollywood, este exemplo está totalmente errado. Primeiro, o episódio não faz parte do livro, nem sequer ocorreu - foi uma invenção “Hollywoodesca”. Se acreditásse em teorias de conspiração, até podia pensar que a intenção era de deliberadamente desacreditar Adam Smith aos olhos do grande público. Segundo, até pode ser verdade que cooperando desta forma eles poderiam sair do bar acompanhados - embora permanceça a dúvida, sendo eles afinal de contas, mestrandos em matemática... No entanto, enquanto a loira estivesse livre cada um deles teria sempre o incentivo de meter conversa com ela, pelo que a cooperação nunca levaria a um Equilíbrio de Nash.

Ao contrário do que foi apresentado nesta cena do filme, a teoria de Nash é na verdade uma poderosa extensão da Mão Invisível e da teoria de acção colectiva. Mostra que existem inúmeras circunstâncias, sem cooperação e sem ambientes competitivos, onde decisões descentralizadas são eficientes. De igual modo, permite sistematizar situações onde o equilíbrio não é eficiente, o que ajuda a identificar estratégias de cooperação que permitam - se necessário e possível - optimizá-lo. Mas isso fica para a próxima.

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19 maio 2006

 

Partido Liberal ou Greve Subversiva?


Caros RAF, JLP e José Barros,

Os vossos argumentos e contra-argumentos constituem um interessante dilema. É evidente que o status quo está em falência e que urge o aparecimento de uma alternativa que permita colocar o país no bom caminho. Da mesma forma que é evidente que as pessoas que têm ideias sobre a forma de o fazer não estão para aí viradas, pelo menos no campo da acção directa.

Quando o RAF diz, na caixa de comentários, que mais facilmente emigra do que "se candidata" (sentimento com o qual confesso ter grande empatia), está a dar voz a uma acção colectiva na qual muita gente capaz tem participado. Os portugueses estão a votar com os pés; abandonam a luta partindo para paragens mais atractivas (a emigração de gente qualificada é uma realidade), ou então, ao estilo orquestra do Titanic, "tocam" serenamente a sua implacável lógica, anunciando o inevitável afundamento do barco, com o qual também afundarão.

Os primeiros são uma espécie de grevistas ao estilo Atlas Shrugged. A sua "greve" precipitando o deveras merecido estampanço da sociedade colectivista. Os segundos são, à sua maneira, também grevistas, embora apresentem uma tranquila dignidade determinista, tipo Vencidos da Vida. Resta saber se assim ficarão, ou se de forma Queiroziana, acabarão por correr atrás do "Americano"; e se sim, quem será o burro que o puxa. Just kidding.

É verdade que o pensamento liberal tem subido de influência de uma forma que seria impensável há alguns anos, quando ser social-democrata era uma atitude de rebeldia face ao mainstream socialista e defender menor papel para o estado, uma autêntica heresia. O banho de realidade e a diminuição do atrito na comunicação (potenciado pela blogosfera) tiveram nisso um papel importante. Mas, e agora? Isso basta? Creio que não.

Tal como o JLP e José Barros, não creio que seja possível influenciar as actuais máquinas partidárias acomodadas ao sistema de oligopólio criado pela nossa Constituição. Logo, compreendo a sua opinião de que deve surgir um novo Partido Liberal, embora perceba as reticências de muitos dos seus potenciais membros. As regras do jogo estão viciadas à partida. Mas continua a haver uma pergunta que inevitavelmente se coloca aos liberais: Are you going to put your money where your mouth is? Ou vão aderir à Greve Subversiva?

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16 maio 2006

 

Nem por encomenda


Depois da discussão sobre o tema, aqui, ali e acolá, vem o Bloco de Esquerda apresentar as suas ideias luminosas para "resolver" os problemas da segurança social:



Tal como o ministro Vieira da Silva, eu ainda não tive oportunidade de estudar esta "bem vinda" proposta do Bloco "na globalidade". Mas posso já apontar o seguinte:

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15 maio 2006

 

Does this come with a money-back guarantee?


No seguimento de um post do RicardoGF sobre a segurança social no Speaker's Corner Liberal Social, gerou-se uma discusão acesa sobre a viabilidade de sistemas de capitalização, a natureza pirâmidal do nosso sistema e solidariedade inter-geracional. Previsivelmente, o inefável Luis Lavoura acabou a pontificar sobre os muitos velhinhos que vão morrer na miséria quando a economia mundial implodir, levando consigo os fundos de capitalização.

Uma vez que muito do que é afirmado sobre sistemas de pensões e segurança social é dito numa base de gut-feeling e não de dados objectivos, resolvi fazer um exercício simples de simulação da capitalização das contribuições realizadas por um trabalhador ao longo da sua carreira contributiva. Assim, podemos todos ter uma melhor ideia do que está em causa quando se fala do assunto.

O modelo consiste nos seguintes inputs e outputs:

INPUTSOUTPUTS
Duração da carreira contributivaDuração esperada
da reforma
Idade de início de actividadeTaxa composta de crescimento do vencimento (real)
Esperança de vidaVencimento no final de carreira (nominal)
Taxa de inflação média no periodoCapitalização total nominal das contribuições no início da reforma
Vencimento no início da carreiraReforma a receber (nominal)
Vencimento no final da carreira (a preços correntes)Reforma a receber (real)
Taxa de capitalização das contribuições (real)Taxa de cobertura da reforma face a último vencimento
Taxa de contribuição (em função do vencimento)Superavit (ou deficit) da reforma relativo a último vencimento (nominal)

Como base, escolhi o cenário expectável face a valores típicos nos últimos anos e previsíveis para o futuro, nomedamente ao nível da taxa de contribuição, que assumi igual à de um trabalhor por conta de outrém no nosso sistema de segurança social. Note-se que a taxa de inflação é irrelevante uma vez que trabalhamos com capitalização real (a preços correntes, com base no primeiro ano da carreira contributiva). Foi assumido um crescimento real do poder de compra deste salário de 1% ao ano. A taxa real de capitalização de 2% permite chegar a uma capitalização de 4,5% consistente com o retorno de longo prazo da dívida pública, o que é um pressuposto extremamente conservador. Assim, o perfil do "indivíduo" em análise é:

Duração da carreira contributiva (anos)43
Idade de início de actividade22
Esperança de vida80
Taxa de inflação média no periodo2,5%
Vencimento no início da carreira600 EUR/mês
Vencimento no final da carreira (a preços correntes)900 EUR/mês
Taxa de capitalização das contribuições (real)2,0%
Taxa de contribuição (em função do vencimento)34,75%

O modelo indica que para este cenário - extremamente conservador - o contribuinte receberia uma pensão nominal de 3015 EUR/mês, ou 1043 EUR a preços correntes, uma cobertura de 115,9% face ao último vencimento. Uma vez que, ao contrário do vencimento, a reforma não estaria sujeita a contribuições, a reforma líquida é ainda maior face ao último vencimento. Note-se que estes rácios são independentes do vencimento, pelo que alguém que tivesse um vencimento superior ou inferior teria uma reforma na mesma proporção. Até aqui tudo certo. As contas indicam que o sistema de segurança consegue cobrir a reforma do contribuinte e ainda sobra um bocado para ajudar com a "safety net".

O problema começa a surgir quando comparamos estes número com a realidade e, em especial, com a alternativa de um investimento num fundo de pensões privado. Em primeiro lugar, é sabido que as contribuições para a segurança social não têm servido para capitalizar mas antes para pagar as reformas dos actuais pensionistas. Em segundo lugar, o perfil de risco de cada indivíduo é diferente da dívida pública e também varia ao longo da sua vida. Não sendo razoável esperar que o sistema público seja capaz de dar resposta aos perfis de risco de todos os diferentes contribuintes, o normal seria que cada um pudesse escolher um sistema privado que correspondesse ao seu risco - mesmo garantindo contribuições extra para uma "safety net". Comparemos então o resultado entre o modelo com os inputs acima referidos e outros em
tudo igual mas com uma taxa de capitalização mais próxima dos fundos privados (um relativamente conservador e equilibrado, outro com mais risco e com um peso mais significativo em acções):


Taxa de capitalização = 2,0%Taxa de capitalização = 4,0%Taxa de capitalização = 6,0%
Reforma nominal3015 EUR/mês(*)5897 EUR/mês11719 EUR/mês
Taxa de cobertura do último vencimento115,9%226,6%450,3%
Superavit anual5780 EUR46120 EUR127633 EUR

O resultado é de deixar qualquer um perplexo. Uma gestão minimamente competente das contribuições deveria gerar retornos que não só cobririam na integra a reforma de cada contribuinte, como angariariam fundos mais do que suficientes para garantir qualquer "safety net". O superavit da capitalização permitiria garantir anualmente, durante o periodo de reforma do contribuinte, o equivalente a meia, 4 e 10 pensões mínimas (que coloquei em 300 EUR mensais a preços correntes). Só para ficar mais claro: nos cenários com fundos privados, as contribuições de um indivíduo permitiriam não só assegurar a sua reforma a um nível ligeiramente acima do seu último vencimento, como ainda garantir pensões mínimas para mais 4 a 10 reformados. Tendo em conta que nos últimos 40 anos, incluindo 3(!) crashes nas bolsas, o retorno anual do S&P 500 é superior a 11%, estes números podiam ser ainda mais impressionantes...

Conclusões:

1) Com contribuições ao nível das actuais, seria possível fazer muito mais e melhor. O retorno do sistema de segurança social no seu todo é uma catástrofe.
2) Para obter uma reforma compatível com o seu nível de vida, cada contribuinte poderia investir uma fracção muito menor do que lhe é actualmente cobrado pelo sistema obrigatório de segurança social, pelo que o argumento de que com isso se perderia a protecção social não tem fundamento.
3) Uma taxa de contribuição entre 8% e 15% permitiria a qualquer indivíduo assegurar a sua reforma. Face aos actuais 34,75%, sobre muita margem para ajudar com uma "safety net".

É caso para perguntar: Que raio anda o estado a fazer com as nossas contribuições para a segurança social?!?

(*) por lapso, na versão original deste post, o valor nesta tabela estava errado, embora correcto no texto.

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12 maio 2006

 

Introdução à Crónica


crónica

do Lat. chronica
s.f.,
narrativa histórica, segundo a ordem dos tempos;
comentário de factos da actualidade;
referências desfavoráveis à vida de alguém;
revista científica ou literária que forma uma secção de jornal.

migas
do Lat. mica (sing.)
s.f.,
espécie de açorda;
prato da gastronomia portuguesa, em particular do Alentejo, cujo ingrediente de base é o pão;
alcunha do autor destas linhas, desde os seus tempos no Instituto Superior Técnico (apesar do autor apreciar o prato acima referido, a origem da alcunha não está de modo algum relacionada).

Crónica do Migas
Escritos idealmente regulares, mas que na prática acabam por ser aperiódicos por não haver tempo para mais.
Surgiu como desabafo sobre o estado geral insatisfatório das coisas, ao estilo graffiti, surgindo subversivamente nas paredes do IST, ressurgindo agora numa dimensão blogosférica, quando as coisas conseguiram ficar ainda piores. Se originalmente esta crónica teve, acima de tudo, um pendor marcadamente influenciado pelo anarquismo, ou mais especificamente, anarco-capitalismo, a idade trouxe o juízo para perceber que o minarquismo é bastante mais defensável na vida real...
Já agora: os defensores do minarquismo não são minorcas.